Revelação do jazz europeu, Elisa Rodrigues sonha em cantar no Brasil

Cantora faz mistura de estilos no disco 'As Blue as Red' e prova boa fase da geração portuguesa

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Por Alberto Bombig
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Numa audição às cegas do álbum As Blue As Red é impossível não jurar tratar-se de uma nova cantora americana. Primeiro, pela pronúncia perfeita de um inglês escorreito. Depois, por conta do timbre, do uso do vibrato no final das frases, da capacidade de improvisação e do total controle rítmico, melódico e harmônico. Uma voz linda, potente, cheia de sentimentos, como na melhor tradição das divas do jazz, do blues e do soul. A sessão e a certeza prosseguem até a faixa de número seis, quando surgem versos cantados num português não menos sublime. 

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A cantora de jazz portuguesa Elisa Rodrigues Foto: Universal Music Portugal

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Nesse momento, uma centelha de nacionalismo verde-amarelo apareceu neste ouvinte que vos escreve, mas foi logo destruída pelo acento lusitano da intérprete. Então, ficou claro que todo o sentimento da voz não vem do rio Mississippi, mas sim do Tejo, afinal, a alma da música negra americana é a mesma do fado. A dona da voz é a portuguesa Elisa Rodrigues, uma das grandes revelações da cena mundial do jazz nos últimos anos e que chega agora ao seu segundo álbum.

Elisa explica: “Sempre consumi muita música cantada em inglês e, enquanto cantora de jazz, dei os meus primeiros passos em inglês também, porque essa é a língua matriz desse gênero musical. Pode ajudar o fato de ter crescido com amigas de todas as nacionalidades e de o inglês ter estado sempre presente ao longo da minha vida. Também trabalho com ingleses e passo várias temporadas em que só falo inglês de manhã à noite. Muitas vezes dou por mim a pensar em inglês”, disse ela ao Estado.

Além de pensar em inglês, Elisa também compõe belas canções na língua de Cole Porter, Ira Gershwin e Duke Ellington. As Blue As Red é a prova disso. Das 11 faixas do álbum, 9 trazem a assinatura de Elisa, sozinha ou em parcerias, sendo 7 delas em inglês. O disco, que foi lançado em maio na Europa, ainda não tem previsão de lançamento em formato CD no Brasil, mas pode ser encontrado nas lojas virtuais internacionais e nos principais serviços de streaming.

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Elisa começou a estudar música ainda na infância. Na adolescência, nos anos 1990, foi com os pais assistir a um show de jazz da cantora Maria João, sua conterrânea. Apaixonou-se pelo gênero. Aos 24 anos, em 2012, lançou seu primeiro álbum: Heart Mouth Dialogues, em parceria com o pianista Júlio Resende. O disco traz sofisticadas versões de clássicos do jazz, como You Don’t Know What Love Is (sucesso com Billie Holiday) e Cry Me a River (imortalizada por Ella Fitzgerald).

Mas o ponto alto desse trabalho de Elisa e de Resende é mesmo verter para o jazz canções do soul, do pop e do rock, entre elas Ain’t No Sunshine (Bill Withers) e Dumb (Nirvana). Um destaque mais do que especial é a interpretação a capela de Elisa da canção Sonhos, do brasileiro Peninha, gravada por Caetano Veloso no álbum Cores e Nomes. Chega a lembrar Elis Regina (1945-1982), considerada por muitos a mais visceral cantora brasileira. “Tenho a maior afeição pela MPB. Um gosto que me foi passado pelo meu pai, que me mostrou tudo o que conhecia e me fez sempre prestar atenção aos poemas e aos arranjos”, diz. Alguma admiração especial? “Chico Buarque. Há poucos no mundo com mestria que se lhe possa comparar.” Na sequência do álbum de estreia, Elisa começou sua parceria com a banda de art rock britânica These New Puritans e se dedicou a gestar o álbum As Blue As Red, que tem sonoridade diferente de seu irmão de estreia. “Esse álbum não é um álbum de jazz. Mas todos os músicos envolvidos no processo têm suas raízes no jazz e isso se sente. Diria que é um álbum de canções, redondas e quentes, com os pés no jazz e com a cabeça no blues e no pop”, define Elisa (leia a crítica abaixo). 

Os planos dela para o futuro incluem o Brasil. “Poder mostrar a minha música ao público brasileiro é um dos meus sonhos mais antigos. Sinto que tenho coisas bonitas para dar. Pode ser que um dia o sonho se concretize.”

Tomara. Vamos torcer.

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Geração portuguesa está em alta

Destino de milhares de turistas brasileiros todos os anos, Portugal está na moda também na música, e Elisa Rodrigues não brilha sozinha nessa cena, uma das mais sofisticadas e inventivas atualmente na Europa. A nova geração não renega o fado, o gênero tradicional considerado a alma portuguesa, porém escolheu o jazz e seus derivados como sua principal forma de expressão. 

“Bem, posso dizer com orgulho que Portugal é um país com muito talento em várias áreas e que a música não é exceção. A cena musical portuguesa está de boa saúde e constato que cada vez mais, aliada ao talento, os músicos têm muita formação o que está a subir o nível cada vez mais”, disse Elisa ao Estado.

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Este mais recente disco de Elisa, As Blues As Red, tem produção da cantora e compositora Luísa Sobral, premiada nos Estados Unidos e uma das mais importantes vozes desta atual geração. Assim como Elisa, ela também canta e compõe em inglês. 

No novo álbum, Luísa divide com Elisa a faixa Justine e toca guitarra acústica em Pontinho, singela canção de autoria da própria Luísa. Ao jornal português Diário de Notícias, Elisa definiu assim a parceria: “Estamos bastante alinhadas, normalmente uma diz ‘mata!’ e a outra diz ‘esfola’”.

Os músicos que acompanham Elisa no álbum são do primeiro time do jazz português. Luís Figueiredo (hammond e piano), Antonio Quintino (contrabaixo), Carlos Miguel (bateria e percussão), Mário Delgado (guitarra elétrica e acústica). “No caso desse disco tive o privilégio de contar com nomes maduros e consagrados. Não podia estar mais feliz”, disse ela. No primeiro álbum, Heart Mouth Dialogues, Elisa contou com a parceria de Júlio Resende, talvez o mais prestigiado pianista de jazz da nova geração portuguesa.

Análise: mistura de estilos marca disco

O novo disco de Elisa Rodrigues, As Blue as Red, traz 11 músicas, 10 delas inéditas. É um trabalho autoral, sob medida para o mercado internacional, alternando estilos. Nada menos do que 9 canções foram compostas em inglês por Elisa e suas parcerias. Logo na abertura, Just Start a Fire é um belo cartão de visitas da nova Elisa Rodrigues: força, intensidade e apuro técnico, traçando a linha divisória entre a fase atual e a do primeiro trabalho, Heart Mouth Dialogues (2012), mais voltado ao jazz e a seus arranjos minimalistas.

Logo em seguida, Little Heart faz questão de lembrar que Elisa ainda é, antes de tudo, uma cantora oriunda do jazz: uma canção doce, como os melhores standards do gênero da primeira metade do século passado. In and Around You, a faixa escolhida por ela para trabalhar o disco comercialmente, recoloca a coisa nos trilhos do pop/rock. Guitarras pronunciadas em solos rasgados, viradas de bateria e vocal estilo Robert Plant (vocalista do legendário grupo Led Zeppelin). A melhor canção do disco. Daí em diante, o jogo já está ganho e ela resolve passear pelas vias da folk music, do blues e do jazz, bem ao gosto de sua contemporânea Norah Jones, a cantora, compositora e pianista norte-americana que no início deste século virou o mercado fonográfico de cabeça para baixo com seu disco Come Away With Me. 

Esses gêneros musicais se alternam em Justine, em parceria com Luisa Sobral, Words, I’ll Be Loving You, The Traveller e Other Men. Belos arranjos e grandes performances dos músicos. Se nenhuma música sensibiliza os mais exigentes nesse bloco, nada, no entanto, compromete o novo disco de Elisa Rodrigues.

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Fora desse eixo, três faixas soam como corpos estranhos no disco, sem que isso signifique estranhamento brutal ou baixa qualidade, muito ao contrário. If You Could Read My Mind (Gordon Lightfoot), a única faixa que não é original no disco, nos remete para a Elisa do primeiro álbum. A versão dela para esse sucesso nas vozes de Johnny Cash, Neil Young e Diana Krall mostra que a moça não perdeu a mão para a arte de se apropriar de outros trabalho e dar a eles sua própria voz. Há ainda duas canções interpretadas em português. Vai Não Vai é uma balada que já nasceu sucesso, no melhor estilo MPB. Pontinho fecha o álbum com um lirismo ibérico em sua letra e uma melancolia no violão de Luísa Sobral. Essa música lembra por demais December, de Norah Jones, no álbum The Fall. Influência geracional?

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