‘Mães Paralelas’ é o primeiro longa de Almodóvar a usar como pano de fundo Guerra Civil de 1930

Para diretor, transição do franquismo para a democracia foi feita de forma imperfeita

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Por Mariane Morisawa
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Pedro Almodóvar costuma deixar pistas dos seus próximos trabalhos nos filmes que lança. Em Má Educação (2004), havia o cartaz de um filme chamado La Abuela Fantasma que, mais tarde, virou Volver(2006). Em A Pele que Habito (2011), em uma cena com Marisa Paredes aparecem livros, entre eles um de Alice Munro que serviria de base para Julieta (2016). No caso de Mães Paralelas, que chega hoje aos cinemas e no dia 18 à Netflix, um pôster apareceu lá atrás, em Abraços Partidos (2009).  Na época, era apenas um esboço do filme que virou, sobre duas mulheres solteiras, Janis (Penélope Cruz), em seus 40 anos, e Ana (Milena Smit), uma adolescente, que se conhecem na maternidade, quando estão para dar à luz seus primeiros filhos. Nenhum dos bebês foi planejado. A partir dali, forma-se uma relação cheia de complexidades entre as duas mulheres. Mas também já havia a ideia de contrapor as mães paralelas com a história mais ampla da Espanha, abordando as valas comuns de combatentes da Guerra Civil (1936-1939). 

Cena de Madres Paralelas, de Pedro Almodóvar, com Penélope Cruz, protagonista de longa data Foto: Netflix

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A hora ideal para afinar a escrita veio de outro momento de dor: a pandemia. “Eu tenho o hábito de ficar sozinho em casa. Então, o isolamento não é exatamente uma novidade para mim”, disse o diretor espanhol a uma plateia lotada depois da exibição de Mães Paralelas no Festival do Instituto de Cinema Americano, em Los Angeles, em novembro. “Mas tirei vantagem de não ter nenhuma vida social. Me concentrei na escrita.”Pouco antes de entrar em lockdown na Espanha, em março de 2020, ele estava ensaiando com Tilda Swinton sua versão livre de A Voz Humana, peça de Jean Cocteau, que virou um curta-metragem exibido no Festival de Veneza daquele ano. Logo depois, ele começaria a pré-produção de Mães Paralelas. “Então, nesse ano e meio de muita dor e tragédia que vivemos no mundo, minha maneira de seguir em frente foi fazer filmes”, disse o cineasta. Mães Paralelas foi exibido em competição no Festival de Veneza de 2021, de onde Penélope Cruz saiu com a Coppa Volpi de atuação feminina. 

“Escrevo o tempo inteiro, sempre tenho diversos roteiros em várias fases de desenvolvimento. É bom não ficar satisfeito de cara”, disse Almodóvar. No caso de Mães Paralelas, a mãe de Ana, Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), seria da Opus Dei. “E eu achei muito maniqueísta”, disse. A mãe de Ana se transformou, então, em uma mulher de ares aristocráticos que nunca teve instinto maternal. “Eu conheci algumas. Você poderia achar que se trata de egoísmo. Mas neste caso eu acredito que Teresa sentia uma vocação profunda de ser atriz e tentei não fazer julgamentos.”  Teresa representa uma parcela mais conservadora da sociedade espanhola. “Eu queria falar dessas duas Espanhas. De um lado, a Espanha republicana, progressista, moderna, que Janis representa. De outro, a Espanha da direita, para quem a reabertura das covas rasas é a reabertura de velhas feridas”, disse Almodóvar.  Em dado momento, sua filha Ana repete o que ouviu em casa, sem pestanejar, gerando a ira de Janis, que luta pela abertura de uma cova rasa e exumação dos corpos, entre eles, possivelmente, o de seu bisavô. Janis diz a Ana que é preciso entender a história do país delas. “Esta é uma cena-chave para mim”, explicou Almodóvar. “Porque Janis também carrega dentro de si uma mentira, a culpa se torna insuportável, e ela decide contar a verdade. Esse é um pouco o coração do filme, o dilema moral da protagonista. Por meio dela, vou falar de uma realidade histórica que, apesar de ter acontecido 85 anos atrás, ainda não foi resolvida." Almodóvar explicou ter buscado falar do assunto com o máximo de respeito por esses corpos e por essas famílias que não podem ir a um cemitério rezar ou depositar flores para seus pais, avós, bisavós. “O pedido deles é muito simples. E a direita e a ultradireita não entendem que não se trata de uma questão política, mas, sim, humanista”, disse Almodóvar. 

Cena de 'Mães Paralelas', de Pedro Almodóvar, que reabriu feidas históricas de seu país Foto: Netflix

Nos últimos tempos, segundo o diretor, as coisas mudaram bastante no país, apesar de as divisões internas evidenciadas na Guerra Civil (1936-1939) entre republicanos e forças fascistas do general Franco terem persistido. “Não sei se foi uma influência do Trump, mas agora temos um partido de ultradireita, coisa que não imaginávamos, porque as memórias da guerra ainda estão presentes”, disse. “Acredito que a influência de Trump despertou todos os loucos do planeta. Pensaram: se este homem pode dizer essas coisas, por que não podemos? De certa maneira, ele ofereceu um manual da brutalidade e do fascismo. Está em todas as partes, infelizmente.” Por isso, ele acha importante os jovens saberem que muitos dos problemas vividos hoje são reflexos da época e da transição do franquismo para a democracia, que foi imperfeita. “É curioso, porém, que quem está exigindo a abertura das covas são os bisnetos e tataranetos. Porque as gerações anteriores estavam tão traumatizadas que viveram em silêncio. Eu acredito que, como eles agem sem medo, vão conseguir.” 

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