‘A Hora da Estrela ou o Canto de Macabéa’ recria obra de Clarice Lispector

Romance é ponto de partida para espetáculo que traz canções originais de Chico César

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Por Ubiratan Brasil
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A atriz Laila Garin forjou seu talento ao viver no palco mulheres de personalidade forte, desde a talentosa Elis Regina em Elis – A Musical (2013) até Joana, que defende seu amor como um furacão em Gota D’Água a Seco (2016). “Foi, portanto, um desafio interpretar Macabéa que, ao contrário das demais, é insípida, não reage nunca e tampouco desperta a atenção de alguém”, comenta ela, protagonista de A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa, musical que estreia nesta sexta, 4, no Sesc Santana. Trata-se da adaptação para o teatro de A Hora da Estrela, o último livro de Clarice Lispector, publicado no ano de sua morte, 1977. E também um de seus romances mais populares, pois a autora transformou Macabéa em um personagem perturbador: apesar de completamente desprovida de atrativos físicos e intelectuais, a nordestina que vive uma paixão frustrada permitiu a Clarice criar uma obra extremamente reflexiva. A obra acompanha a migrante nordestina que se muda para o Rio de Janeiro, onde leva uma vida marcada pela ausência de afeto e poesia. Vista pela sociedade como uma mulher desprovida de qualquer atrativo, Macabéa se contenta com uma existência medíocre: ganha menos do que um salário, divide um quarto com quatro pessoas, sofre com um chefe rigoroso e não atrai a atenção de ninguém.

AtrizLaila Garin em cena de 'A Hora da Estrela' Foto: Ariel Cavotti

Com sua escrita característica, ora seca, ora repleta de metáforas, Clarice interfere na história a partir da figura de um autor, que vê Macabéa na rua e resolve narrar a vida de uma pessoa tão invisível, comum e sem brilho, em um exercício de alteridade. Estratégia semelhante usou o diretor do espetáculo, André Paes Leme, que, ao adaptar o texto para o palco, criou a figura da atriz, que vai interpretar aquela mulher tão desprovida de vivacidade, ao mesmo tempo que reflete o pensamento de Clarice. “O trabalho de adaptação não é de reescrever o texto”, acredita Paes Leme. “É o trabalho de transportar o universo sem estar aprisionado a qualquer palavra, através da edição e deslocamentos de episódios. Houve também a recondução dos textos do autor para a atriz.”Apesar de experiente na transcrição da literatura para a linguagem cênica, ele enfrentou outro desafio: o de adaptar a trama para o universo do teatro musical. Para isso, contou com a valiosa parceria de Chico César. O compositor paraibano logo percebeu que o caminho certo passava pela música que apoiasse o texto e que não o sobrepusesse.  César criou mais de 30 canções, das quais o diretor musical Marcelo Caldi selecionou cerca de 25 que mais bem se enquadravam na dramaturgia do espetáculo e as transformou em partituras. E o que o público ouve, em boa parte da encenação, é o texto original de Clarice. “Mergulhei na sonoridade das palavras dela que, além de muito preciosas, são passíveis de virar canção”, conta Chico César ao Estadão.

Cena do espetáculo 'A Hora da Estrela ou O Canto de Macabéa', inspirado na obra de Clarice Lispector e estrelado por Laila Garin. Foto: Ariel Cavotti

Assim, o compositor preferiu preservar o texto original e só fazer acréscimos quando necessário. Mas, quando fez, apresentou um material poderoso, como se observa no refrão da canção Vermelho Esperança, que se tornou, aliás, o carro-chefe do espetáculo: “Da lama, nasce uma flor / Vai ser a minha vingança / Vermelho, flor do amor / Eu sou vermelho esperança / Vermelho para onde eu for / Vermelho onde o sangue dança / E quem quiser me ver melhor / Não mate minha criança”. “Chico não só criou canções para que eu cantasse como também permitiu que déssemos voz a Macabéa, revelando seus pensamentos”, comenta Laila, que confere mais riqueza e revela várias facetas de sua personagem. “No dia a dia, Macabéa é uma mulher nordestina oprimida, que não reage, não grita, não briga e nem reclama, é muito passiva. Mas, quando entramos em seus pensamentos, que ganham vida no palco, damos voz a ela e descobrimos a delicadeza de uma mulher que desconhece ter uma vida interior.” O espetáculo, produzido pela atuante Andréa Alves, da Sarau Agência, chega a São Paulo com uma longa trajetória. A estreia aconteceu no Rio em março de 2020 – uma semana depois, foi interrompido por causa da pandemia do novo coronavírus. Quando retornou, já em 2021, encerrou a temporada carioca e ainda foi a Belo Horizonte e Brasília com o elenco se apresentando com máscara preta. “Finalmente, em São Paulo, teremos a chance de mostrar nosso rosto”, festeja Laila, cujas primeiras frases ditas na peça vinham carregadas com um tom premonitório: “Essa história acontece em estado de emergência e calamidade pública”. “Ao longo do tempo, fui acrescentando mais camadas dramáticas a essas falas.”

Chico César é atração do Mundo Pensante Foto: Marcos Lauro

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Três perguntas para Chico César 

O texto de Clarice Lispector é, por vezes, árido. Como foi ouvir música em suas palavras? O texto de João Cabral de Melo Neto também é árido, seco. Ambos são muito musicáveis: é preciso descobrir essa sonoridade do texto e, a partir daí, buscar os modos de entoar esse texto. Foi interessante buscar ouvir o som da palavra de Clarice. O livro é o ponto de partida, mas como foi criar, com letras e melodias, um universo que não está na obra? Eu praticamente não criei textos novos, apesar de essa ser uma reivindicação do diretor e da atriz. Eu quis cantar mesmo aqueles textos que pareciam difíceis. Mergulhei nessa sonoridade porque o texto é muito precioso e mostrou que era possível virar canção. Só adaptei uma coisa ou outra para caber na música e em algum momento criei um texto novo. Eu quis mesmo cantar Clarice.Macabéa é uma personagem fascinante, apesar de ser muito passiva. Como era a Macabéa que você tinha na cabeça quando compunha? Eu já tinha, desde a adolescência, Macabéa na minha imaginação, uma nordestina sem lugar numa cidade grande, como o Rio. Houve também a Macabéa interpretada no cinema por Marcélia Cartaxo, paraibana como eu. E ainda o conhecimento dessas mulheres que saem do interior do Brasil em busca de um lugar nos grandes centros. Eu mesmo sou uma Macabéa, uma pessoa desterritorializada. Compus Macabéa para a Laila, pensando na voz dela. Mas espero que essa Macabéa sonora sirva também para outras montagens.

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