Crítica: Rio Montreux Jazz Festival se torna referência de festival híbrido

Sem se tornar um amontoado de lives, evento consegue transpor o calor dos erros e dos acertos para que o público se sinta quase que fisicamente presente

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Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

O Rio Montreux Jazz Festival parecia fadado a algum arranjo de última hora quando a pandemia veio dilacerar sonhos e projetos, no início de março. Depois de uma bela estreia no ano passado, com a aprovação dos diretores da marca que vieram pessoalmente da França para conferir o que o produtor Marco Mazzola faria com a marca que Claude Nobs, morto em 2013, tanto prezava desde sua criação, dar sequência à saga no País parecia uma questão de honra.

Sérgio Dias Foto: MARCOS HERMES

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O que se passou no último final de semana pode ser usado de protótipo para que outros festivais não joguem a toalha mesmo em meio a um mundo de incertezas coletivas projetadas para 2021. Mais do que um amontoado de lives, algo em que alguns festivais estão se tornando, o evento ganhou vida com uma resolução híbrida entre o físico – o fato de estar acontecendo tudo aquilo em um palco no Rio, um em Los Angeles e outro em Nova York faz toda diferença – e o digital, com uma transmissão chegando a 200 mil pessoas no mundo. Um número interessante quando comparado aos 28 mil que viram a primeira edição, apenas física, no Pier Mauá, no Rio. De um estúdio no mesmo Hotel Fairmont, em Copacabana, onde o “palco principal” foi montado para a maioria das apresentações, Zeca Camargo segurava muito bem a onda de ser espirituoso até com as provações de Wagner Tiso duvidando no início da entrevista que ele conhecesse o grupo cinquentenário Som Imaginário.

Em um comunicado enviado pela assessoria de imprensa do evento, Mazzola diz que o hibridismo parece um caminho sem volta: “O brasileiro tem esta capacidade de se reinventar, mesmo com todas as adversidades. E o melhor de tudo é que nos comprometemos e entregamos da melhor forma possível. Sempre surpreendemos positivamente e isso é maravilhoso. Uma reinvenção que entra para a história e que estamos avaliando se permanecerá. Entregamos uma qualidade tamanha que fica difícil imaginar uma edição apenas presencial do Rio Montreux Jazz Festival.”

O line up, muito forte em 2019, esteve quente e equilibrado entre nomes mais ou menos pop, mesmo dentro do jazz. E eis um ponto a se prestar atenção. É no elenco que um festival ganha identidade e faz as pessoas o procurarem depois da terceira ou quarta edição não mais pelos nomes que ele traz, mas pela ideia que conseguiu sedimentar, pela famosa “marca”. Assim, a filosofia de Mazzola, que consiste em convidar artistas para que eles criem shows particulares e exclusivos para o RMJF, algo que o Palco Sunset do Rock in Rio começou a fazer nas últimas quatro edições dentro de um conceito mais pop,  se torna essencial como artifício de line up atraente mesmo lidando com uma fonte natural pouco renovável.

Se o ineditismo de artistas de massa para um festival de rock bienal se esgota hoje na quinta edição, um festival anual de jazz e música instrumental brasileira pode se tornar um desafio ainda maior. Mas ali estavam Toquinho com Yamandú Costa ensaiados para a ocasião, Bianca Gismonti e Claudia Castelo Branco com a percussionista Lahn Lahn num raro momento em que uma percussionista lidera e conduz dois pianos com uma energia arrebatadora, o bandolinista Hamilton de Holanda e o pianista Amaro Freitas coltrenizando (de John Coltrane) temas do choro e desfazendo e remontando Zé Keti, a clarinetista Anat Cohen com o violonista Marcello Gonçalves saindo dos cerebrismos para atacar uma deliciosa Andar com Fé, de Gilberto Gil e Jaques Morelenbaum, o músico brasileiro que mais deve ter pisado no palco de um Montreux Jazz Festival, com seu CelloSambaTrio, agraciado pela bateria de volume e tudo preciso de Márcio Bahia e o violão de harmonia tinhosa de um craque chamado Lula Galvão.

Nem tudo deu certo – e eis a delícia de um hibridismo real, sem malandragens. Cada vez mais há casos de ‘fake lives’, lives falsas que, na verdade, são gravações vendidas como se fossem shows ao vivo (mas isso é tema para uma outra matéria). O guitarrista norte-americano Stanley Jordan e o brasileiro Diego Figueiredo são grandiosos e exuberantes, e talvez juntá-los confiando apenas em seus talentos não seja tão simples. Diego foi de violão e Jordan de guitarra. Independentemente de sua linguagem erguida sobre a técnica do tapping, que consiste em fazer melodia com harmonia pressionando o braço do instrumento com as duas mãos ao mesmo tempo, Jordan transborda com uma sonoridade espaçosa e brilhante que faz qualquer acompanhamento se tornar desnecessário, mesmo o de um fera como Figueiredo. O resultado é que mesmo uma melodia forte como a de Caravan, de Duke Ellington, se perde dentre tantas volúpias.

Os guitarristas Stanley Jordan e Diego Figueiredo Foto: Marcos Hermes

O homenageado da edição foi Milton Nascimento na noite de domingo (25). Sua presença foi precedida pelo coral gospel Sing Harlem, formado por garotos e garotas do bairro de histórico tão humilde em estrato social quanto próspero em cultura, berço do canto gospel por todas suas igrejas batistas construídas quase que lado a lado em suas avenidas principais. Depois veio o próprio Milton e, na sequência, as participações de Maria Gadú e Samuel Rosa. E então o gráfico começou no alto, com uma força incrível desta que certamente foi a atração mais poderosa trazida por Mazzola. O Sing Harlem tem um poder indescritível com seus cantores jovens que a todo momento deixam de ser vozes de naipes para assumirem a frente. E chegam cantando um mais do que o outro como se estivessem em uma celebração do Harlem. Cantam, batem palmas, pulam e choram ao sentir o espírito daquilo que evocam fazendo-se presente.

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Alguns ainda dizem que as cantoras do gospel “gritam demais”. É preciso então contemporizar um detalhe: a força do canto negro nos Estados Unidos herdou o clamor a Deus dos pastores protestantes (de onde saíram Little Richard e Etta James) e a revolta contra a dominação branca da época dos escravos, o que abriu espaços inspirados tanto para o lamento e as lágrimas do blues quanto à euforia e a estridência do gospel. Ou seja, mesmo quando isso foi parar em Whitney Houston e, depois, em Beyoncé, não era grito, era sobrevivência. A história no Brasil foi outra. Sobretudo depois de ter seus decibéis filtrados pela bossa nova branca, o canto brasileiro não foi pelo mesmo caminho assim como a coloração das cantoras. Ao contrário dos Estados Unidos, dominado pelas cantoras negras do jazz, as vozes pretas na MPB são inacreditavelmente raras a ponto de fazer de Alaíde Costa uma estranha no ninho, chamada às costas e pejorativamente de “ameixa”. Por mais um motivo, é preciso respeitar os gritos de Elza Soares.

Mazzola e João Donato Foto: Marcos Hermes

Mas Milton estava lá, com seu canto gospel não de quem clama, mas de quem parece atender a um clamor. É o que parece ser seu silvo, aquela região em que Elis dizia morar a “voz de Deus” e que mesmo o Sing Harlem reverenciou com muito respeito. Depois de uma apresentação esfuziante dos garotos e garotas do Harlem com Walk in the Light,  Amazing Grace, Riverside, Freedom Medley, Purple Rain, Go Down Moses, Work it out e This Little Light of Mine, eles entraram com uma versão em inglês de Nada Será Como Antes, de Milton e Ronaldo Bastos. A harmonização do pianista simplificou demais o que, quando se toca Milton, não pode ser simplificado, mas as vozes entregaram um show nas alturas que Milton nem sempre manteria, sobretudo depois de chamar Maria Gadu (que faria com ele Um Girassol da Cor do Teu Cabelo, Canoa Canoa e Cravo e Canela) e Samuel Rosa (para Viola Violar, Para Lennon e McCartney,  Clube da Esquina 2 e Paula e Bebeto, também com a volta de Gadu). Não importa. Bons e maus momentos fazem parte dos melhores festivais de música e, mesmo à distância, era como se estivéssemos lá.

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