
15 de março de 2016 | 06h00
Confira três poemas de Thiago de Mello, autor de 'Faz Escuro Mas eu Canto', entre tantas outras obras que marcaram sua geração.
Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.
Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
(Santiago do Chile, abril de 1964)
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Mão do Lixo
Para as crianças brasileiras que estão nascendo
A mão com que eu cato o lixo
Não e a mão com que eu devia ter.
A minha mão o que quer
na mesa da minha casa
o bom pão de cada dia.
Como não tenho, então venho
catar no lixo o que os outros
não quiseram, virou lixo.
Não fa mal se ficou sujo,
se os urubus beliscaram,
se ratos roera pedaços.
Do que ia matar minha fome
mesmo estragado serve,
porque fome não tem luxo.
A mão com que cato o lixo
não é a com que nasci,
foi feita pela nação.
Quando como coisa podre,
depois me torço de dor,
fico pensando tomara
que essa dor um dia doa
nos que têm tanto, mas tanto,
que fazem pão virar lixo.
Com meus dedos no monturo,
me sinto um lixo de infância.
Não pareço, mas sou criança.
Por isso enquanto procuro
restos de vida no chão,
uma fome diferente,
quem sabe é o pão da esperança,
esquenta meu coração.
Que um dia criança alguma
do meu país e do mundo
seja mão virando lixo.
(Escrito a pedido da Unesco) - 'Em Acerto de Contas' (2015)
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