Leia poemas de Thiago de Mello, que comemora 90 anos

Nascido em 30 de março de 1926, poeta será homenageado em São Paulo

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Por Redação
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Confira três poemas de Thiago de Mello, autor de 'Faz Escuro Mas eu Canto', entre tantas outras obras que marcaram sua geração.

Thiago: São 65 anos dedicados à poesia Foto: Sérgio Castro|Estadão

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Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)A Carlos Heitor Cony

Artigo I  Fica decretado que agora vale a verdade,  que agora vale a vida,  e de mãos dadas,  marcharemos todos pela vida verdadeira.    Artigo II  Fica decretado que todos os dias da semana,  inclusive as terças-feiras mais cinzentas,  têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 

Artigo III Fica decretado que, a partir deste instante,  haverá girassóis em todas as janelas,  que os girassóis terão direito  a abrir-se dentro da sombra;  e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,  abertas para o verde onde cresce a esperança. 

Artigo IV  Fica decretado que o homem  não precisará nunca mais  duvidar do homem.  Que o homem confiará no homem  como a palmeira confia no vento,  como o vento confia no ar,  como o ar confia no campo azul do céu. 

Parágrafo único: O homem, confiará no homem  como um menino confia em outro menino. 

Artigo V Fica decretado que os homens  estão livres do jugo da mentira.  Nunca mais será preciso usar  a couraça do silêncio  nem a armadura de palavras.  O homem se sentará à mesa  com seu olhar limpo  porque a verdade passará a ser servida  antes da sobremesa. 

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Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos,  a prática sonhada pelo profeta Isaías,  e o lobo e o cordeiro pastarão juntos  e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora. 

Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo. 

Artigo VIII  Fica decretado que a maior dor  sempre foi e será sempre  não poder dar-se amor a quem se ama  e saber que é a água  que dá à planta o milagre da flor. 

Artigo IX  Fica permitido que o pão de cada dia  tenha no homem o sinal de seu suor.  Mas que sobretudo tenhasempre o quente sabor da ternura. 

Artigo X Fica permitido a qualquerpessoa,  qualquer hora da vida,  uso do traje branco. 

Artigo XI  Fica decretado, por definição,  que o homem é um animal que ama e que por isso é belo,  muito mais belo que a estrela da manhã. 

Artigo XII  Decreta-se que nada será obrigado nem proibido,  tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. 

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Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:  amar sem amor. 

Artigo XIII  Fica decretado que o dinheiro  não poderá nunca mais comprar  o sol das manhãs vindouras.  Expulso do grande baú do medo,  o dinheiro se transformará em uma espada fraternal  para defender o direito de cantar  e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final.  Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.  A partir deste instante  a liberdade será algo vivo e transparente  como um fogo ou um rio,  e a sua morada será sempre o coração do homem.

(Santiago do Chile, abril de 1964)

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Mão do LixoPara as crianças brasileiras que estão nascendo A mão com que eu cato o lixo Não e a mão com que eu devia ter. A minha mão o que quer na mesa da minha casa o bom pão de cada dia. Como não tenho, então venho catar no lixo o que os outros não quiseram, virou lixo.

Não fa mal se ficou sujo, se os urubus beliscaram, se ratos roera pedaços. Do que ia matar minha fome mesmo estragado serve, porque fome não tem luxo. A mão com que cato o lixo não é a com que nasci, foi feita pela nação.

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Quando como coisa podre, depois me torço de dor, fico pensando tomara que essa dor um dia doa nos que têm tanto, mas tanto, que fazem pão virar lixo.

Com meus dedos no monturo, me sinto um lixo de infância. Não pareço, mas sou criança. Por isso enquanto procuro restos de vida no chão, uma fome diferente, quem sabe é o pão da esperança, esquenta meu coração.

Que um dia criança alguma do meu país e do mundo seja mão virando lixo.

(Escrito a pedido da Unesco) - 'Em Acerto de Contas' (2015)

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