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"Não se deve tomar os outros por idiotas"

Em vez de fazer autocrítica, Jair Bolsonaro prefere o caminho perigoso de chamar os manifestantes de “idiotas úteis”.

Por Estado da Arte
Atualização:

 Foto: NELSON ALMEIDA / AFP

por Isabelle Anchieta

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Sempre me lembro desse conselho certeiro do sociólogo francês Michel de Certeau quando me deparo com o menosprezo à capacidade dos outros em pensar e agir. Ao que tudo indica o atual governo não aprendeu com os equívocos do anterior que, da mesma maneira, passou a desqualificar os movimentos sociais e acabou se vendo engolido por eles. O Brasil acaba de presenciar, no dia 15 de maio, o primeiro movimento social de grandes proporções em reação ao contingenciamento (ou corte, ainda não se sabe ao certo) de verbas do ensino superior anunciados pelo governo de Jair Bolsonaro. O presidente, ao contrário de fazer uma autocrítica - já que a crise foi em grande medida provocada por uma série de falas desencontradas e desastrosas do ministro anterior e do atual - preferiu o caminho defensivo e perigoso ao chamar os manifestantes de "idiotas úteis".

Há dois erros que se anunciam: primeiro, o de não ler a voz das ruas e, segundo, o de não compreender a emergente oposição social ao governo. Não se tratam somente dos opositores ligados à esquerda progressista ou dos manifestantes cooptados pelos movimentos sindicais, como tenta fazer crer o presidente. Há dois grupos importantes que podem mudar a balança do jogo: aqueles que não votaram, os quais chamei de "sem-lugar", e os que votaram em protesto, contra o PT. O apoio desses depende das ações e da coerência do governo, já que desde princípio fizeram uma "aposta frágil" na mudança. 

Prova disso é que esse protesto não parece restringir-se aos opositores naturais (que também estavam presentes). Ao que tudo indica é o primeiro movimento espontâneo contrário ao governo. Fato reconhecido, inclusive, pelo MBL (Movimento Brasil Livre), lembrando que nem os sindicatos nem os movimentos sociais, como MST e UNE, estavam capitalizados para realizar tal mobilização e que em grande medida o protesto é responsabilidade de erros do governo. Assim, para além do mérito do tema dos cortes ou do contingenciamento nas universidades, (agora atribuído ao teto de gastos aprovado na gestão Michel Temer) quero destacar aqui o erro de forma do governo, de como reagir aos movimentos sociais.

Nosso passado recente é o melhor exemplo dessa dinâmica de forças e pode nos oferecer pistas para um futuro próximo. Após todos os protestos a ex-presidente Dilma se reunia com sua equipe próxima para avaliar os danos e as respostas a serem dadas. Em seguida, fazia um jogo duplo de "bate e assopra", convocando uma coletiva com a imprensa, tendo como porta-vozes dois ministros. Um dizia respeitar as manifestações democráticas e o outro a criticava afirmando serem os manifestantes eleitores frustrados de Aécio Neves, reforçando a ideia de uma elite burguesa inconformada. Em seguida Dilma fazia o papel de defesa da democracia e da livre manifestação do pensamento com uma postagem nas redes sociais, sem se expor diretamente. O jogo era bem feito e articulado. Desconfio, inclusive, que teria contido as manifestações se, no segundo semestre de 2013, tivesse conseguido aprovar no Congresso uma Reforma Política Plebiscitária, no sentido de atender as demandas sociais mais imediatas. Mas nem mesmo a base aliada apoiou a sua proposta, com receio de perder privilégios e imunidades. Desde então a tática do governo Dilma de congraçar-se com os manifestantes foi tomando um tom cada vez mais agressivo contra eles. Mesmo que não tenham, em momento algum, tentado impedir ou reprimir as pessoas nas ruas, os representantes do governo passaram a estereotipar e denegrir os que se manifestavam. Ao fim desse embate, como bem sabemos, venceu a insistência das ruas e não a narrativa do governo.

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Poucos se deram conta e os governantes parecem ser os últimos a perceber que vivemos uma mudança pronunciada dos brasileiros quanto à mobilização pública diante das ações do governo. A despeito das "fake news", há uma circulação ampla de informações. Estamos mais próximos da transparência, das contradições e da verdade do que o contrário. E, se há mais investigações e mais circulação de informações é porque as pessoas estão mais interessadas em acompanhar os desdobramentos políticos. Os erros e as falas reverberam como nunca reverberaram e é preciso saber pensar e dizer antes de agir. Mas também saber reagir diante de um público atento e em plena formação de sua cidadania. Não há idiotas por aqui, como bem nos lembra Michel de Certeau.

Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, mestre em Comunicação pela UFMG, premiada como Jovem Socióloga pela ISA/UNESCO.

Notas:* O título faz referência ao sociólogo francês Michel de Certeau, em A Invenção do Cotidiano, 1980.

 

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