O que explica o fenômeno 'Dark', da Netflix?

Qual o segredo da série alemã para conquistar fãs do mundo todo com uma complexa trama apocalíptica?

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Por Rodrigo Petronio
Atualização:

Antes, um aviso: este texto contém spoiler. Desde a estreia da primeira temporada (T1), em 1º de dezembro de 2017, a série Dark aos poucos deixou de ser um produto audiovisual, primeira produção alemã da Netflix. Converteu-se em objeto de culto. Gerou um fenômeno cultural: a darkmania. A segunda temporada (T2), lançada em 21 de junho de 2019, aprofundou esse carisma. Para catalisar essa adesão dos espectadores, o streaming e os criadores da obra, Baran bo Odar e Jantje Friese, lançaram a terceira temporada (T3) exatamente no dia em que, na cronologia da narrativa, seria o Dia do Apocalipse: 27 de junho de 2020.

E o Apocalipse de fato ocorreu. Uma hecatombe de memes, comentários, textos, análises, compartilhamentos, vídeos. Uma explosão de teorias sobre as relações dos personagens. Hipóteses sobre linhas alternativas da estória. Atualmente, mantém-se no Top 5 das obras mais vistas do streaming. Desde o fim de Breaking Bad (AMC, SIC e AXN) e de Game of Thrones (HBO) não se via algo parecido.

'Dark' ganhou status de fenômeno cultural após 3 temporadas Foto: Netflix

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A crítica especializada também deu sua contribuição. Em uma votação realizada pelo Rotten Tomatoes, site de referência em audiovisual, Dark foi eleita a melhor série da Netflix, vencendo a amada Stranger Things e a aclamada Black Mirror. Além de ganhar o prêmio Grimme-Preis, o mais importante da televisão alemã, Dark figura com pontuação 8.8 no IMDb, o maior banco de dados de produtos audiovisuais do mundo. Por fim, a Netflix criou até um site oficial interativo para navegar por essas multitramas e multiversos.

O que faz de Dark uma obra-prima da teledramaturgia? Em uma análise da T2 publicada há alguns meses no Caderno 2, levantei alguns dos elementos que contribuem para esse êxito. A T3 os aprofunda e os resolve. A progressão do drama da T1 e da T2 gira em torno do apocalipse nuclear e da descoberta dos mecanismos do sistema portal de travessia entre os mundos. Ao fim da T2, a Martha de um mundo alternativo abre uma nova linha de fuga nesse universo: o espelhamento excludente entre os universos de Jonas e Martha. Chamemo-los respectivamente de Universo 1 (U1) e Universo 2 (U2).

A T3 é toda guiada pela rivalidade entre Adam (Dietrich Hollinderbäumer) e Eva (Barbara Nüsse), versões mais velhas de Jonas e Martha. O primeiro age para produzir o Apocalipse e, assim, realizar o Paraíso. A segunda tenta defender a Terra para se autopreservar. Contudo, a T3 adiciona uma informação: não há dois universos, mas três. Este U3, onde Martha e Jonas foram concebidos, foi criado por H. G. Tannhaus e é o universo Original.

O relojoeiro Tannhaus, ao criar a máquina do tempo para reverter a morte de seu filho, nora e neta em um acidente de carro, criou a primeira fissura no tempo-espaço. Essa fissura se abre a cada 33 anos e se consumou com o desastre nuclear. Claudia, a personagem trickster, mensageira dos mundos, descobriu este U3 e o comunicou a Adam-Eva. A fio de Ariadne da T3 então é a aventura de Jonas e Martha tentando superar as contingências e a condição autoexcludente de seus respectivos universos. Ambos são um “erro da Matrix”, referência à série das irmãs Wachowski. A missão de ambos na T3 passa a ser corrigir tal defeito: evitar o acidente da família de Tannhaus em 1986. Mas, como nada em Dark é simples, permeando essa linha condutora, o espectador tem muitas revelações e reviravoltas sobre a gênese, as transformações e o destino de cada personagem.

Do ponto de vista conceitual, enquanto a T1 e a T2 se apoiam sobretudo nos buracos de minhoca (wormholes), no Paradoxo de Bootstrap e no bóson de Higgs, a partícula de Deus, a T3 se concentra em explorar o emaranhamento quântico e o famoso paradoxo do “gato de Schrödinger”. De acordo com o experimento mental concebido pelo brilhante físico teórico vienense, um gato dentro de uma caixa poderia estar vivo ou morto. Tudo depende do observador.

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Usado como um dos principais modelos de descrição do universo quântico, a estrutura fundamental da matéria pode ser onda ou partícula. Depende do momento em que o observador a observa. E cada partícula-onda pode estar simultaneamente em tempos-espaços distintos. O U1 e o U2 seriam dois universos interconectados por um evento. E, ao mesmo tempo, se anulam reciprocamente. Neles, o presente, o passado e o futuro coexistem. O que significa o mesmo que corroborar uma frase dita por Adam em T2: o tempo não existe.

A série usa como premissa uma sentença pessimista de Schopenhauer. E, ao mesmo tempo, atribui aos personagens a possibilidade de alterarem seus passados, presentes e futuros. Saborosa ironia. Nesse sentido, a odisseia de Dark termina com uma ambivalência. Ao mesmo tempo que o par romântico Martha-Jonas altera seus destinos e arquiteta os pluriversos como Adam-Eva, a realização do Paraíso implica a restituição de um mundo onde nenhum deles exista.

Os dois, bem como todos os personagens que derivam da Origem (U3), estão simultaneamente vivos e mortos. Não são entidades atuais (seres), mas virtualidades (podem vir a ser). Por isso, a maior ironia é a sequência final. A mensagem subliminar parece nos dizer que nunca superaremos o combate mortal entre destino e contingência, entre a fatalidade do cosmos e nossa liberdade humana, demasiado humana.

*RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO. PROFESSOR TITULAR DA FAAP

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