16 de setembro de 2018 | 06h00
Ao som da tradicional canção natalina Noite Feliz, detalhes de corpos femininos surgem na tela, em uma reconfortante harmonia. O clima pacífico, porém, cede aos poucos lugar para o incômodo, e a própria trilha sonora segue por um caminho mais sinistro. Até que a palavra ‘assédio’ assume todo o campo visual, com um detalhe aterrador: um fórceps surge no alto e leva um naco da palavra.
É como um alerta para que se apertem os cintos – a minissérie Assédio, cujos 10 capítulos estarão disponíveis pela Globo em seu canal Globoplay a partir do dia 21, trata de um assunto tão urgente como delicado.
Livremente inspirada no livro A Clínica: A Farsa e os Crimes de Roger Abdelmassih, de Vicente Vilardaga, a obra ficcionaliza a história de um grupo de mulheres que formam uma rede para denunciar os abusos sexuais cometidos por um médico bem-sucedido e respeitado, Roger Sadala (vivido por Antonio Calloni). Como o profissional que lhe serviu de inspiração, Sadala é especialista em reprodução assistida e sua onda de crimes aviltantes começa a se tornar pública quando uma de suas vítimas rompe o silêncio e torna público o que era restrito ao consultório.
“A história se torna uma saga quando outras quatro mulheres, auxiliadas por uma jornalista, aumentam o coro das denúncias”, comenta Amora Mautner, que assina a direção artística da minissérie. Sua presença, aliás, é essencial para que Assédio se transforme na mais importante série dos últimos tempos. Afinal, cada capítulo foi cirurgicamente preparado, desde a definição das cores frias, gélidas, que compõem as cenas até a angulação que privilegia detalhes dos corpos. “A luz é de hospital, quase de um IML, o que representa uma morte simbólica – isso explica a opção de privilegiar apenas algumas partes do corpo das mulheres.”
Com um vasto currículo de séries e novelas (com destaque para a já clássica Avenida Brasil, de 2012), Amora estava em férias quando recebeu da Globo o convite para dirigir Assédio. Ao ler o roteiro escrito por Maria Camargo (com Bianca Ramoneda, Fernando Rebello e Pedro de Barros), percebeu que o tema era explosivo e atual. “O DNA da história era a dor daquelas mulheres e sua superação. Percebi que poderia ser uma série de sentimentos.”
Com um texto bem elaborado, a diretora começou seu trabalho artístico. E basta uma conversa com Amora para se surpreender com sua estética apurada. Conhecedora do cinema mundial, ela buscou inspiração, por exemplo, em filmes gregos contemporâneos como Miss Violence e seu estilo frio e formal para revelar a violência cometida contra a mulher. Assim, de uma forma absolutamente detalhada e detalhista, Amora revela, de maneiras e ângulos diferentes, a sensação de mal-estar e desordem que se espalha pelo mundo.
Ao trabalhar com a temporalidade (em um mesmo capítulo, a ação pode se passar nos anos 1990 e dar um salto para os 2000), a diretora mostra a dor de Stela (Adriana Esteves), Eugênia (Paula Possani), Maria José (Hermila Guedes), Vera (Fernanda D’Umbra) e Daiane (Jéssica Ellen), mulheres que buscavam a maternidade, mas foram iludidas por Roger Sadala. É particularmente dolorida, mas necessária a forma como a diretora filmou o estupro sofrida por elas. “As atrizes se sentiram incomodadas ao ler o roteiro e, durante a filmagem, a dor se tornou explícita.”
Tal veracidade, aliás, só foi conquistada graças à relação de Amora com o elenco. “Ela é como um aquecedor de set, fazendo com que atuássemos de uma forma inovadora”, conta Mariana Lima, que vive a mulher de Sadala.
Ao interpretar o violador, ator acrescenta detalhes sórdidos, como a forma racista com que trata uma paciente baiana
O roteiro de Maria Camargo surpreende ao apresentar a figura de Roger Sadala – apesar da abominável lista de abusos cometidos por ele contra suas pacientes, o médico revela-se uma figura contraditória, dividido entre o rigor profissional e a crença de que seus atos são celestiais. “Maria humaniza sua figura e até o deixa simpático”, comenta Amora Mautner, que utilizou toda a extensão do talento de Antonio Calloni.
Assim, seus atos invasivos são mostrados até nos mais simples detalhes, como a forma com que beija as pacientes ou mesmo ao usar a mão para alisar determinadas partes do corpo feminino, o que provoca asco e constrangimento. “Calloni acrescentou muitas características ao personagem”, diz.
Amora filmou os estupros na fronteira da dor e da vergonha, chegando ao limite artístico na violação sofrida pela paciente vivida por Monica Iozzi. Ali, suas lágrimas são reais.
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