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Jô Soares era um milagre, homem dos mil personagens que sempre sabia se reinventar; leia análise

É raro encontrar um sujeito culto, refinado, ser tão humilde, comunicativo, popular

Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Jô Soares era um milagre brasileiro. É raro encontrar um sujeito culto, refinado, que trafegava em todas as áreas, TV, teatro, jornalismo, artes plásticas, literatura, cinema, educado no Liceu Jaccard, em Lausanne, ser tão humilde, comunicativo, popular.

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Aos 20 anos, contracenou no cinema com Grande Otelo, Emilinha Borba, Nelson Gonçalves. Não se incomodava em fazer escada em Praça da Alegria e, aos 29 anos, para o gigante do humor físico, Ronald Golias, em Família Trapo – uma revolução na TV brasileira, que ficou dez anos no ar, levado ao vivo e com improvisos num teatro lotado da Record.

Encarnava personagens que abordavam questões de gênero, provocavam uma sociedade conservadora, preconceituosa. Ser gordo, assumir ser gordo, ser a favor dos gordos e usar um grande bordão, “viva o gordo, abaixa o regime”, para provocar a ditadura, deram-lhe um assento no lugar de fala dos discriminados.

Jô Soares trafegava em todas as áreas: TV, teatro, jornalismo, artes plásticas, literatura ecinema Foto: Daniela Ramiro/Estadão

Se o mundo vivia em pé de guerra e o movimento paz & amor contaminava, lá vinha ele como um hippie doidão em Faça Amor Não Faça Guerra. Passou por Satiricon, Planeta dos Homens, Praça da Alegria, até ganhar protagonismo em Viva o Gordo com seus 300 personagens, do boleiro Zé da Galera, que reclamava pelo orelhão com Telê Santana da falta de ponta na seleção, ao Capitão Gay.

Travestia-se com deleite em personagens femininos, Norminha, a cozinheira gulosa Aninha, Vovó Nana. Fazia o rei anão de joelhos, um autoritário inútil, com uma técnica circense aprimorada.

Reconhecimento

Humor precisa de repertório. Atores dizem que é mais difícil do que drama. Grandes humoristas, de Jerry Lewis a Petter Sellers, fizeram coisa séria com os pés nas costas. E quando todos achavam que Jô estava ultrapassado, ele se renovava.

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Tocou uma coluna na Veja, que ilustrava. Mudou de emissora e inaugurou no SBT o gênero tão popular e necessário nos Estados Unidos, late night talk show, inspirado em Johnny Carson e David Letterman, que mistura humor, entrevista, música.

Diferentemente dos seus colegas americanos, uma cláusula da Globo o impossibilitava de entrevistar no Jô Soares Onze e Meia grandes celebridades contratadas. Deu a ele a chance e diferencial de promover um programa politizado, num momento de retomada da democracia. Fez história com entrevistas que eram comentadas no dia seguinte. 

“Ir a um Jô Soares” no SBT e depois na Globo era o auge da carreira de qualquer um. Gentil, nos tratava como estrelas mais influentes do que ele. Dirigia no teatro atrizes refinadas, como Beth Coelho. Certa vez, ambos traduzíamos peças de Shakespeare. Ele dava dicas de dicionários e estilos. 

Solidão

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Fui à sua casa numa noite. Demorou para atender a porta. Veio torto, encurvado, reclamando do ciático. Estava sozinho. O grande apartamento de Higienópolis, escuro e vazio. Fomos ao seu escritório, forrado pelo mais potente e moderno equipamento de informática. Havia vários HDs conectados e um monitor gigante. De uma cadeira, operava tudo, como um piloto de Boeing.

Conversamos horas. Quando me preparei para partir, ele enrolava, não queria que eu fosse, não queria ficar sozinho. Era triste. Todo encurvado, no escuro, me levou até a porta.

O homem de mais de mil personagens estava só. Doze anos de entrevistas no SBT, mais 16 na Globo, 28 anos com plateia, banda, entrevistados, em torno de 7 mil programas. E ali, um solitário. Um beijo pra você, gordo. Tem uma galera te esperando por aí.

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