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Fernanda Torres retoma o sucesso de seu monólogo 'A Casa dos Budas Ditosos'

Aos 50 anos, a atriz se sente cada vez mais dona do próprio nariz

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Se fosse um filme, Fernanda Torres certamente seria uma comédia refinada de Alain Resnais, aquela que tanto faz o espectador gargalhar como se sentir estimulado por uma discussão pertinente e criativa. Aos 50 anos, a atriz se sente cada vez mais dona do próprio nariz, participando de projetos que talvez afugentariam os mais incautos. Afinal, enquanto a maioria procura apresentar novidades que, pela urgência mal elaborada, revelam-se vazias, ela vai reestrear novamente o monólogo A Casa dos Budas Ditosos, estrondoso sucesso baseado no texto de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), que iniciou carreira em 2003 e agora retorna em curta temporada no Teatro Fecomércio, Sala Raul Cortez, a partir da sexta-feira, 8.

Trata-se de uma comédia afrodisíaca dirigida por Domingos Oliveira, em que Fernanda interpreta uma libertina baiana sexagenária que detalha as incontáveis experiências sexuais que teve ao longo da vida. Definitivamente, impagável. Além disso, Fernanda também está cuidando de seu programa Minha Estupidez, que estreia em outubro no GNT e no qual mistura entrevistas com intelectuais e reconstituições de obras de referência - o primeiro será com Ubaldo, entrevistado pela atriz há oito anos, e sua obra prima Viva o Povo Brasileiro. Sobre os projetos, Fernanda conversou por telefone com o Estado.

A atriz Fernanda Torres Foto: Fabio Motta|Estadão

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Você falou que toparia fazer essa peça até aos 68 anos, a mesma idade da personagem. Pelo visto, não mudou de ideia, não?

Não gosto de fazer direto, continuamente. Adoro voltar a ela. Acho que hoje faço melhor que antes, tenho mais compreensão do mundo como ela. Domino melhor o ritmo. Toda vez que falo o texto é como revisitar o Ubaldo. Hoje, a personagem tem um acúmulo de experiência e memória que a torna ainda mais relevante para mim. O dia em que cansar, eu paro. Mas não aconteceu.Você acredita que a forma de se encarar hoje a libertinagem é diferente?

Sinto menos em relação ao sexo. O mundo caminhou, especialmente em relação ao casamento gay. Há doze anos, o engajamento político e sexual era menor e o politicamente correto hoje é mais forte. Por isso considero ela mais importante agora que na época, pois representa uma espécie de terceira via. É uma outra maneira de fazer política. Claro que o engajamento é necessário, faz o mundo caminhar, mas às vezes é tomado por ou isso ou aquilo. A personagem representa bem a geração do Ubaldo, muito culta e livre. Não é uma libertina baixa, mas uma libertina com a voz de Deus. Para ela, importa que você tenha cumprido sua vocação, que você seja livre para ser quem é, o que não acontece muito com as pessoas hoje. A liberdade é mais vigiada, existe uma maneira correta de ser livre (risos).

A política é mais libertina hoje?

Não, é mais às claras. A gente vivia com tudo embaixo do tapete. Hoje, a obscenidade do jogo político veio à tona, tomou forma e consciência. O entrave é: será possível fazer política que não de forma obscena? Ou será que tudo vai ruir se a gente não lidar com uma certa dose de obscenidade? (Risos) Na época, as pessoas eram mais näif em relação ao jogo político. A política não era tão vigiada.

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Nossa crise atual é muito impressionante. Esquerda e direita se valeram dos mesmos meios, como se a política obrigasse todo mundo a caminhar da mesma maneira. Em 2003, ainda havia um sonho de projeto com a chegada do PT ao poder; hoje, é terra arrasada. É uma hora muito difícil, as coisas não funcionam no macro em nenhum lugar do planeta.

Mas precisávamos chegar à terra arrasada?

Nossa política de coalisão - que no fundo é de conchavo - vive num cheque mate. Não sei qual caminho seguiremos, pois, em 2003, havia a utopia de que caminhávamos para algum lugar, para um Brasil grande. Hoje não temos isso. Mais do que nunca, a personagem do Ubaldo é importante por ser a resolução pessoal, uma espécie de uma libertação a partir de você.

E a corrupção?

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Ela sempre existiu, sempre foi grande, mas agora se tornou visível e, por vivermos um arrocho econômico agora, não existe aquele dinheiro sobrando - antes era possível manter a corrupção porque havia criação de emprego. Sou de uma geração que não sofreu com a ditadura militar - só conheci o final dela -, mas vivi 20 anos de um desacerto econômico. Minha experiência, então, me mostra que terei de esperar por duas décadas para ver a situação atual melhorar. De uma certa forma, estou me preparando para isso (risos).

E o Minha Estupidez?

O programa nasceu há 8 anos. Na época, eu acreditava que existia um elogio à ignorância. O Brasil é um país único, pois tem tantas pessoas que não sabem ler e escrever como figuras do porte do Ubaldo. Assim, gravei um programa piloto com ele, sobre sua formação. Na verdade, o programa foi o caminho que descobri para contar ao Ubaldo que passei três anos mentindo ao dizer que tinha lido o Viva o Povo Brasileiro (risos). Aí eu li e o programa se tornou uma mistura de entrevista com uma adaptação do caboclo Capiroba, o canibal do Viva o Povo, interpretado pelo Evandro Mesquita. Ficou interessante essa mistura de ficção e entrevista, mas o programa era muito caro para a televisão fechada, que, na época, não investia tanto em produção local como agora, e era muito hermético para TV aberta. Assim, fiquei anos tentando viabilizar, até finalmente agora conseguir. Fiz mais quatro, mas não sei no que vai dar, pois o material filmado é um samba do crioulo doido.

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Como assim?

Olha, o primeiro programa tem o Ubaldo como um show man e ele tem passagens preciosas - em um determinado momento, ele fala escatologia em latim (risos). E o programa é inspirado na obra dele. Assim, a partir do segundo, eu podia continuar entrevistando autores, mas decidi focar em outros assuntos. Então, escolhi o cientista Antonio Nobre e adaptei O Inimigo do Povo (de Ibsen), que tem muito a ver com o Rio, pois se passa em um balneário onde um personagem diz que o cocô vai voltar para a praia. Com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, tratamos da questão indígena a partir do também antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que descobri recentemente, e adaptei o mito do povo Canela sobre a origem do homem branco. O terceiro é com Caetano Veloso e adaptamos PanAmérica, do José Agrippino de Paula. Finalmente, a ministra Carmen Lucia com quem fizemos uma relação com a cena do julgamento de O Mercador de Veneza. Mas não sei no que vai dar tudo isso. Acabamos de gravar e temos de editar.