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Como a mais famosa e talentosa artista de uma série de TV da sua era fracassou na Broadway

Lucille Ball queria bancar um musical, estrelando todas as cenas, dançando e cantando um grande número de músicas difíceis. Havia apenas dois problemas: ela não era uma boa dançarina e nem uma boa cantora

Por Darin Strauss
Atualização:
Um mural de Lucy e Ricky, do programa 'I Love Lucy' no Lucille Ball Festival of Comedy, em Jamestown, NY, em 4 de agosto de 2012. Foto: Marcus Yam/The New York Times

Esta é a história de como a mais famosa e talentosa artista de uma série de TV da sua era, e talvez de todos os tempos, fracassou na Broadway. A estrela era Lucille Ball. O ano era 1960. E ela estava num momento difícil - “numa fase depressiva”, como lembrou mais tarde.

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I Love Lucy havia chegado ao fim. Seu casamento também. O último beijo em Desi foi no último momento do último episódio. O rosto dele no seu cabelo, as lágrimas, “Você queria dizer, “Corte”. O abraço final. No dia seguinte, ela entrou com pedido de divórcio.

Quando seu casamento é considerado o casamento dos Estados Unidos o que você faz quando o amor desmorona? Lucille Ball não sabia, inicialmente. Biógrafos afirmam que ela dormiu e gritou no sofá de uma amiga. “O que eu faço é tão sem sentido, tão sem importância”, ela suspirou depois de assistir a uma peça estrelada por Vivien Leigh. “Veja o que ela faz”.

Essa inveja a arrancou do sofá: uma carreira no teatro, como disse em sua autobiografia, “era a ambição da minha vida”. Uma ambição que os que viram suas atuações puderam acompanhar. Aos 17 anos, ela deixou a escola secundária numa pequena cidade no norte do Estado de Nova York e partiu para a Broadway, para ouvir apenas isto: Você não tem talento. Por que não volta para casa?

Mais tarde, outras tentativas também fracassaram. “Nunca consegui”, disse ela a um jornalista em 1960. “E quero provar para mim mesma”.

Lucille Ball não era somente uma superestrela em 1960. Ela também era uma pioneira, um magnata de saias. A Desilu Productions, o império comercial que ela dividia com Desi Arnaz, seu ex-marido, controlava o maior espaço de estúdio de TVe o que ocupava mais tempo de televisão do que todos os demais do setor, segundo a Life Magazine.

Agora ela precisava apenas encontrar uma peça para estrelar. 

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Fiquei sabendo da aposta de Lucille Ball no teatro, um fato amplamente esquecido, quando estruturava meu livro The Queen of Tuesday,É um híbrido de romance e biografia sobre ela - e também sobre meu avô, e o polêmico romance entre eles. O caso é integralmente uma especulação, mas de resto a maior parte do que está no livro pode ser comprovada. (Havia uma lenda na família de que meu avô e ela se encontraram numa festa da qual participaram o pai de Donald Trump, com celebridades lançando tijolos contra um belo monumento em Coney Island, que é a cena de abertura do livro).

Escrever o livro levou-me a admirar esta mulher poderosa e brilhante. Mas para relatar o trecho seguinte até mesmo o mais ardoroso fã de Lucille fica mais cauteloso.

Lucille queria bancar um musical na Broadway, estrelando todas as cenas, dançando e cantando um grande número de músicas difíceis. Havia apenas dois problemas: ela não era uma boa dançarina e nem uma boa cantora. “Nem no banheiro”, ela lembrou em sua autobiografia, Love Lucy. E o show que escolheu, Wildcat, exigia que ela cantasse e “quase subisse paredes”.

Ou, exigiria isso. Eventualmente. Uma peça pode sofrer todos os tipos de mutação. Especialmente quando a mais popular estrela do país participa da produção (para não dizer se apropria).

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N. Richard Nash, que escreveu a peça, concebeu-a como um drama - a história de uma mulher de jardineira (macacão) que chega a uma cidade petrolífera do sudoeste americano com o sonho de enriquecer. Ao contrário de heroínas de outras peças, Lucille leu e rejeitou o papel. Wildcar Wildly Jackson, “o gato pula mais alto que a onça”, como escreveu ela, era o tipo de personagem de fala grosseira e incrivelmente ativa” que ela queria interpretar.

Um telefonema de Desi Arnaz e US$ 400 mil depois, “e tudo foi embalado e tirado literalmente das minhas mãos”, disse Nash a um jornalista. “O produto final não tinha nada a ver com o meu original”.

O público em 1960 na Broadway estava começando a se agitar. E Lucille Ball era a estrela das estrelas. Corpos celestiais de tal magnitude colocam tudo na sua órbita, então por que não o mundo do teatro? Os cartazes ilustram o óbvio: “Broadway loves Lucy”, você consegue ouvir, mesmo hoje, o zumbido das velhas calculadoras, o fluir das receitas.

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Lucille Ball e o marido Desi Arnaz em uma cena no programa de televisão 'Lucy faz um cruzeiro para Havana', que foi transmitido apenas uma vez em 6 de novembro de 1957. Foto: Museu da Televisão e Rádio / via REUTERS

E assim o drama de Nash se tornou (como Lucille descreveu na autobiografia) “um musical com excelentes músicas de Cy Coleman e Carolyn Leigh” - naquela época uma nova equipe de roteiristas. Outra renovação: a protagonista, uma jovem de 20 anos que cuidava da irmã adolescente - foi transformada numa mulher já nos seus 50 anos.

Problemas atrasaram a produção desde o início. Nos ensaios, Lucille ficava cansada, chegou a ir para o hospital e tinha dificuldade em decorar o texto. E seu professor de canto sugeriu que ela se limitasse a cantar apenas em uma nota enquanto a orquestra tocava a melodia.

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Não quer dizer que Lucille não estivesse envolvida: ela alugou um apartamento na East 69th Street e embora fosse apenas uma locação, ela derrubou paredes do imóvel para ter uma vista dos rios Hudson e East; o plano era ficar cinco anos na Broadway.

Mas como a rainha da novela ela se habituara às risadas grandiosas: quando ficou claro que o show não iria produzir gargalhadas fenomenais ela decidiu fazer do seu jeito. Um cachorro no palco teve um acidente numa matiné logo depois da noite de estreia e Lucille pegou uma vassoura usada para o palco e se dirigiu à plateia: “Isto está em letras pequenas no meu contrato”, disse ela. “Tenho de limpar o cachorro”.

Outra noite sua personagem perguntou ao ator coadjuvante: “Diga-me, você conhece um camarada chamado Fred Mertz?” A piada provocou gargalhadas (Mertz era o nome do vizinho dela no programa em I Love Lucy), mas não tinha sentido. Quem na cidade do Texas, em 1912, conheceria Mertz, e por que ela perguntou? Lucille também reconhecia seus erros para o público quando se perdia no diálogo ou numa canção, e começava de novo.

Desnecessário dizer que essas excentricidades violavam as regras sagradas do teatro. Mas não foram os amadorismos e nem mesmo as péssimas críticas que condenaram Wildcat. O show foi um sucesso comercial. As pessoas queriam ver Lucy. E era o mais próximo que conseguiam vê-la. Mas a produção naufragou graças ao seu pecado original: confiar um papel não apropriado a uma atriz que não era de teatro estrelando um musical.

“Foi o trabalho mais extenuante fisicamente da minha carreira”, ela disse mais tarde. Ela ficou gripada, tinha crises de choro, quebrou dois dedos, torceu o tornozelo três vezes, perdeu oito quilos, contraiu um vírus e fez uma pausa para se recuperar na praia. Depois desmaiou no palco, mais de uma vez. A produção instalou um balão de oxigênio nos bastidores do teatro. Ela sofreu um desmaio, durante um número intitulado Tippy, Tippy Toes, um colega tentou escondê-la e quebrou o punho. Nesse ponto da apresentação, a substituta de Lucille já havia ido para a casa.

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Todo o sucesso e popularidade do mundo não pode salvar uma ideia mal concebida. Talvez exista uma lição no caso, uma lição geral para o teatro do século 21. Por mais admiração que as estrelas de Hollywood tenham pela Broadway - e muitos produtores de peças que só visam lucro devem ter ganho ao atrair Lucille Ball para seu mundo relativamente pequeno - o triunfo em um meio pode, na verdade, corroer o trabalho em outro. Talento não é necessariamente algo transitório.

Mas ainda assim acho o esforço de Lucille Ball admirável. Em 1986, quando Ronald Reagan conferiu a ela o prêmio do Kennedy Center - a mais alta honra que o país oferece a seus artistas, Walter Matthau apresentou-a com uma frase que aparece em inúmeros obituários e biografias: “Não existe um sonho que ela não tenha buscado. E nenhum deslize que não assumiu”.

Tradução de Terezinha Martino

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