“Julgar que, porque se casou, está dispensada de seduzir seu marido é um erro grave.” E que tal essa: “Os trajes femininos são apenas o confesso desejo das mulheres de vestir-se e o inconfessável desejo de despir-se”. Aí estão duas pistas do primeiro episódio da série Correio Feminino, que estreia neste domingo, no Fantástico, em quatro episódios de dez minutos cada, sempre com um tema distinto, distribuídos por quatro domingos. A criação é de Luiz Fernando Carvalho, mas a fonte vem de data distante.
Entre as décadas de 1950 e 1960, uma tal de Helen Palmer dava preciosos conselhos às leitoras do jornal Correio da Manhã. E que conselhos daquela época poderiam valer para as mulheres de hoje? Muitos, acredite. Por trás da identidade de Helen Palmer, estavam “só” as digitais de Clarice Lispector.
Era de se esperar que esse material viesse à tona pelas mãos de uma mulher. Carvalho, no entanto, conta que a descoberta é toda sua, intuitiva e sem interferência feminina. Vasculhando a obra da escritora para fins de pesquisa, o diretor deu de cara com um material dos idos jornalísticos da autora de A Hora da Estrela. Helen Palmer fazia parte daquele período.
Para quem adaptou Machado de Assis, Eça de Queiroz, Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Ariano Suassuna e agora trabalha em Graciliano Ramos, o caráter intimista presente no texto de Clarice só incentivou sua adaptação para a TV.
"Quando eu me deparei com esses textos, logo percebi uma proximidade muito grande com a televisão. O elemento do diálogo, a forma que ela encontrou de escrita é uma forma de confidente, muito próxima, a gente poderia dizer, do Facebook de hoje, do Twitter, da postagem de hoje”, diz o diretor.
Assim que pensou em Helen Palmer na TV, já imaginou três mulheres de gerações diferentes a receber os conselhos da colunista. Cintia Dicker faz a mais nova, Alessandra Maestrini encara a idade seguinte e Luíza Brunet faz a mais velha.
“Quando li, já vi pronto. Imediatamente já vi quem seria essa ouvinte, mas vi que não poderia ser uma só, porque os textos davam conta de questões e idades diferentes”, argumenta. “Teria que ser tripartido em três gerações. Aí chamei a Maria Camargo para adaptar e ela botou isso em roteiro final.” O que só viria mais tarde seria a locutora/apresentadora vivida por Maria Fernanda Cândido.
“Quando fui desenvolvendo, me incomodava que a voz da Helen Palmer viesse do além, de um recurso muito batido: o off. Tive vontade de contextualizar aquela voz. Aí me remeti à época de ouro do rádio, nascimento da televisão, e acabei achando bom fazer uma homenagem à própria televisão e ao rádio.” Daí a abertura da série, onde câmeras e gruas se movimentam em um estúdio todo branco, com foco naquela mulher de quem não vemos o rosto.
Sim, veremos Maria Fernanda Cândido na TV e não veremos os manjados closes naqueles olhos verdes. Dela, o espectador enxergará apenas as pernas meio cobertas por saia à altura dos joelhos, num caminhar e cruzar de pernas sobre a banqueta da locutora. Vestidas em longas luvas, as mãos às vezes levam à boca a piteira que ostenta uma cigarrilha. O resultado não é de locução, convém dizer, mas sim de uma conselheira de fato, com frases certeiras entremeadas por sutil sarcasmo.
O figurino é todo pautado na época, que ditou também o grafismo de um cenário que quase não se pode chamar de cenário. “Não tem recurso nenhum, é um quadrado de luz, de pano, que eu iluminei por trás. As cores do cenário são luz: muda do verde pro rosa, pro vermelho. E não há um contraplano”, observa. “Isso, em termos de linguagem visual de televisão, é uma coisa muito moderna.”
O contraste com figurino e conceitos de época, com texto não perecível, é evidente. “Ao mesmo tempo que tem um design de imagem muito moderno, trabalho com vestidos de época, cores de época, tem uma paleta da época, encontrada em comerciais, revistas, aqueles cabelos, aquelas atitudes... Agora, tudo é muito simples, é um procedimento barato, é uma dramaturgia do Fantástico”.
As atrizes tiveram aulas de balé clássico e de preparação corporal para chegar aos gestuais da época. Ao contrário de Maria Fernanda, que só fala e mal mostra a face, não ouviremos as vozes de Cintia Dicker, Alessandra Maestrini e Luiza Brunet. Elas falam, quando muito, por meio de textos estampados na tela, imitando o clássico recurso de cinema mudo.
Também lançam algumas perguntas, dilemas que darão às mulheres a postos no sofá a chance de pensar – o que a televisão nem sempre permite. “Não acho que exista nada ali datado, a ponto de se dizer que ‘é um retrocesso voltar a pensar isso’. Acho que muitas questões avançaram na sociedade, mas muitas estão paralisadas.”
A primeira espectadora da série foi Val, dona de casa de classe média que hospedou Carvalho e parte da equipe que trabalha em outra produção da Globo, Alexandre e Outros Heróis, baseada em conto de Graciliano Ramos, em pleno sertão alagoano, à beira do São Francisco, no município de Pão de Açúcar. “Ela saiu quicando. Foi incrível o quanto afetou o lado de mulher dela, o quanto ela repetia pra mim: ‘o importante, mais que ser bonita, mais que ser atraente, mais que se preocupar com vaidade, o importante é ser mulher’. Então, pensei, acho que estamos no caminho certo.”