Bresson discute vida e dor em Mouchette

O mais rigoroso entre os diretores, francês fez da história de uma jovem a metáfora do livre arbítrio

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Por Antonio Gonçalves Filho
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É um dos filmes mais radicais do diretor francês Robert Bresson (1901-1999), autor tão rigoroso que realizou apenas 13 filmes em quase 50 anos de carreira (de 1934 a 1983, quando dirigiu O Dinheiro, seu último filme). Mouchette, a Virgem Possuída (1967, Silver Screen Collection) é uma síntese do pensamento filosófico-existencial de Bresson, marcado pela presença da literatura de Georges Bernanos (1888-1948), de quem adaptou, além de Mouchette, o clássico Diário de um Pároco de Aldeia (1951). A influência da visão católica de Bernanos - quase um jansenista em sua crença na predestinação - é evidente nos dois filmes que, afinal, se completam. Diário de um Pároco fala de um padre alcoólatra visto com maus olhos pelos fiéis de sua aldeia, como Mouchette. Adolescente de 14 anos, Mouchette é uma rejeitada. A mãe morre de um câncer terminal e ela se vê, subitamente, cuidando do irmão menor e de um pai alcoólatra, que abusa sexualmente dela. Destinada à infelicidade, Mouchette é quase uma representação metafórica da miséria existencial de outros seres desesperadamente solitários e atirados à violência cotidiana, ao escárnio e à traição de seus semelhantes. Em certo sentido, Mouchette é o correspondente feminino de Jó bíblico. Pelo tema de Mouchette, um diretor mediano teria feito apenas um melodrama barato. Mas Bresson é um autor e está mais interessado em discutir questões como a busca da redenção e o exercício do livre arbítrio. Ele dispensa a compaixão do espectador, realizando um filme ascético, em preto-e-branco, com atores desconhecidos e um talento descomunal.

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