Bráulio Mantovani: "Não lembro de ter visto nada com o mesmo impacto que Twin Peaks na TV aberta"

"Obviamente eu também queria saber quem tinha matado Laura Palmer. Mas não era por esse motivo que eu ficava em casa nos sábados à noite. Eu ficava para ser surpreendido pela imaginação de David Lynch"

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Por Bráulio Mantovani
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Quando "Twin Peaks" estreou na ABC, em 1990, eu morava nos Estados Unidos. Trabalhava de segunda à sexta, no mínimo 12 horas por dia, como "dolly grip", o sujeito que empurra o carrinho que desliza a câmera sobre um trilho para fazer o plano chamado "travelling". Para a maioria dos operários do cinema com quem eu trabalhava, sábado à noite era sinônimo de cair na gandaia. Mas eu caía mesmo era no sofá da sala, para assistir ao episódio da semana de "Twin Peaks".

Laura Palmer, de Twin Peaks Foto: ABC

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"Quem matou Laura Palmer?" era uma pergunta onipresente nos mais diferentes grupos sociais. Talvez quase tão frequente quanto a nossa clássica "quem matou Odete Roitman?". O "whodunit" (quem matou?) sem dúvida alguma foi importantíssimo para viciar os espectadores. Incontáveis séries usam essa mesma estratégia. Porém, mesmo entre as melhores, poucas ou talvez nenhuma tenha feito história como "Twin Peaks".

Obviamente eu também queria saber quem tinha matado Laura Palmer. Mas não era por esse motivo que eu ficava em casa nos sábados à noite. Eu ficava para ser surpreendido pela imaginação de David Lynch.

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Não quero de nenhuma maneira diminuir a importância de Mark Frost, o parceiro de David Lynch, na criação, desenvolvimento e realização da série. O resultado é sem dúvida mérito da dupla. Por outro lado, impossível não falar de "Twin Peaks" sem empregar aquele adjetivo que tem, no cinema, o mesmo poder definidor que kafkiano tem na literatura: a série é "lynchiana". Correndo o risco de expor minha falta de erudição, cultura e informaçãoa mim me parece que o efeito “lynchiano” é o que torna a primeira temporada de "Twin Peaks" um marco da história da TV aberta.

A série é permeada por um senso de humor bizarro e por cenas oníricas que remetem a experimentações de videoarte e a performances. Muitas imagens e mise-en-scènes que compõem os episódios de "Twin Peaks" seriam consideradas prosaicas e até banais no universo da arte contemporânea. No reino do entretenimento, que é a TV aberta, o efeito é de uma perturbadora e singular estranheza. A velha senhora com o tronco de lenha na mão, as conversas do agente Cooper com seu gravador Diane, o agente transgênero Denise, o anão, o gigante, a prima-sósia de Laura Palmer, o demônio Bob, o Homem-de-um-só-braço, o agente surdo interpretado pelo próprio Lynch, entre muitos outros personagens, são para mim muito mais relevantes na série que os ganchos folhetinescos e a grande surpresa final para o mistério "quem matou Laura Palmer?".

Kyle MacLachlan revive o agente Cooper em nova temporada de Twin Peaks Foto: Suzanne Tenner/Showtime

Não me lembro de ter visto nada depois de "Twin Peaks" que produzisse um impacto sequer semelhante na TV aberta. (Obviamente, na TV paga a história é outra.) 

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Há cerca de três anos revi as duas temporadas de "Twin Peaks" e admito uma certa decepção com a segunda. Sobretudo, com o final. Mesmo assim, aguardo ansioso a estreia da terceira.

Os "saltos quânticos" (a única analogia que me ocorre aqui) na forma da narrativa audiovisual não podem ser planejados. Eles acontecem. Mas só acontecem quando nós, que fazemos cinema e TV, corremos riscos sem medo de bater a cara na parede ou levar porrada dos críticos. David Lynch não joga para a torcida. Por isso é um verdadeiro artista. Se ele errar desta vez, vou aplaudir de pé com o mesmo entusiasmo que aplaudo seus êxitos. A grande arte também é feita, como diria Oswald de Andrade, pela contribuição milionária de todos os erros.

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