Arthur Nestrovski e José Miguel Wisnik discutem suposto fim da canção em nova série

'Depois do Fim da Canção', dirigida por Daniel Augusto, vai ao ar às segundas-feiras no canal Arte1

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
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Em 2004, Chico Buarque refletiu sobre um possível fim da canção. “Talvez tenha sido um fenômeno do passado”, chegou a dizer. Vinda de quem vinha – ídolo nacional e notável cancionista – a afirmação causou frisson. Na esteira desse debate se estruturou a série Depois do Fim da Canção, dirigida por Daniel Augusto, escrita, estrelada e “tocada” pela dupla Arthur Nestrovski e José Miguel Wisnik. A série, em oito episódios, vai ao ar às segundas-feiras, 21h, no Canal Arte 1, com repetições ao longo da semana. 

Daniel Augusto, autor da cinebiografia de Paulo Coelho Não Pare na Pista, conta que Nestrovski e Wisnik iniciaram uma série de aulas-show anos atrás tendo por tema a afirmação provocativa de Chico Buarque. A polêmica já havia gerado em 2012 um DVD, dirigido pelo próprio Daniel, reunindo Wisnik, Nestrovski e o musicólogo Luiz Tatit, um especialista reconhecido na teoria da canção. Agora, o desejo era voltar ao assunto em uma série, mais ao estilo das aulas-show, em que a complexidade do tema pudesse ser discutida com a extensão que merece. 

Série. Nestrovski, Paula Morelenbaum eWisnik Foto: CINEGROUP

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“Ao longo dos oito programas são abordados o samba, o lugar da canção, a bossa nova, o tropicalismo, o rap, o funk, algumas figuras da atualidade, a hipercanção contemporânea e, claro, Chico Buarque”, descreve Daniel. Os personagens que entram nas conversas vão de Noel Rosa a Nelson Cavaquinho, Metá Metá, Gui Amabis, passando por Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso, Tom Zé, Racionais, Anitta, Emicida, Elza Soares, entre outros. Como se vê, é quase um panorama extenso e horizontal da música popular brasileira, mesclando alguns nomes do cânone a outros artistas mais recentes. 

A estrutura dos programas é simples. Conversas de cerca de 26 minutos cada uma, nas quais um tema é abordado, discutido... e cantado, claro. Wisnik canta e toca piano; Nestrovski é violonista. Alguns convidados se juntam à dupla. Num dos programas, comparece o músico baiano Letieres Leite que, munido de um agogô, explica as particularidades – e complexidades – rítmicas da música brasileira, baseadas na síncope e herdadas de suas raízes africanas. 

Em outra, sobre a bossa nova, a convidada é a cantora Paula Morelenbaum. Nesse episódio, Nestrovski e Wisnik explicam como os acordes dissonantes e o estabelecimento da batida de violão de João Gilberto abriram caminho a essa linha evolutiva da música popular brasileira. Há dois momentos curiosos, um deles quando Wisnik interpreta um clássico da bossa nova, a canção manifesto Desafinado, dela retirando a harmonia dissonante e algumas imprevisibilidades da linha melódica, e assim obtendo um bonito, mas um tanto insosso samba-canção. Como uma demonstração, ad absurdum, sobre a ginga da bossa. Em outra parte, inicia tocando o Prelúdio Op. 28 n.º4 de Chopin e passa a outro clássico da bossa nova, Insensatez. Mostra que não se trata de plágio, mas de releitura de Tom Jobim, que frequentava com regularidade e intimidade o universo dos músicos “eruditos”, como o próprio Chopin, Debussy, Ravel e, claro, Villa-Lobos. 

O programa parece menos uma mesa de botequim que um daqueles cultos saraus familiares, mas sem pompa nem pose. “O formato do programa, inspirado no Ensaio, criado por Fernando Faro (1927-2016), foi pensado para colocar em evidência a excepcionalidade dessa dupla. Procurei a simplicidade formal”, diz Daniel. 

Resta dizer que se trata de simplicidade bastante sofisticada. Os sons e as canções, e os voos teóricos da dupla, são iluminados pelo talento do fotógrafo Jacob Solitrenick, um dos bambas do nosso cinema. Wisnik é ensaísta e professor de Literatura da USP. Nestrovski é diretor artístico da Osesp. 

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E quanto à canção e sua atualidade (ou não)? Nesse sentido, a própria série já contém uma resposta implícita. Pode-se tomar um ângulo de visão, por exemplo, pelo episódio que se abre com Dorival Caymmi (Coqueiro de Itapuã) e parte para a afirmação do samba como espécie de unificador nacional na época do governo Vargas. No episódio seguinte, salta-se para a bossa nova e sua ambientação num outro Brasil, otimista, era JK, construção de Brasília, etc. Afirmação brasileira, mas não no estrito nacionalismo varguista e sim com abertura para o exterior. A bossa é música moderna, dialoga com o jazz, reinventa a batida do samba, subverte a harmonia tradicional e coloca melodia e letra como um todo indissolúvel. Expressa uma época e seu desejo (não cumprido por outra série de circunstâncias históricas, conhecidas de todos). 

A série tira sua força dessa capacidade de articulação (não mecânica) entre a música e aspectos históricos de sua época. Se Chico Buarque pôde falar em declínio da canção, a frase pode ser retomada como a perda da centralidade dessa modalidade num mundo em que outras expressões predominam, como o rap e o funk. Por que falam mais ao seu tempo? Bem, esse é o “x” do problema. 

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