A presença de palco de Emilio de Mello toma a cena de ‘Psi’, série nacional da HBO

Drama brasileiro traz às produções nacionais a densidade dramática que consagrou séries já clássicas na TV

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Por Clarice Cardoso
Atualização:

Estantes estão lotadas de livros teóricos e estudos de caso, mas Carlo Antonini passa por elas batido. Abre as janelas, encara a cidade. "Esta é a minha biblioteca." O protagonista da nova série nacional da HBO, Psi, vivido pelo ator Emilio de Mello, vê em cada luz acesa mais que uma história de vida. Enxerga dramas humanos. Psiquiatra, psicólogo e psicanalista, ele conduz o promissor drama que ganha estreia de gala no domingo no canal, às 21h, com a exibição na sequência de dois episódios.

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Carlo vê em São Paulo um cardápio que o fascina. É com essas pessoas, mais até do que com as que vão ao seu consultório, que ele promete se envolver nos 13 episódios de uma hora que se seguem.

Esqueça a primeira comparação que virá à cabeça, com In Treatment ou Sessão de Terapia. Psi vai muito mais fundo: vai além do divã para mostrar sutilezas da vida cotidiana entremeadas por cenas de ação bem conduzidas. Não subestima o espectador, e traz, em meio a referências bibliográficas e a diálogos provocadores, um protagonista paradoxal. A emissora vende a trama como uma história que nos aproxima de neuroses e diagnósticos psiquiátricos sem preconceitos. Não é bem por aí: pelo olhar de Carlo, questões humanas anteriores vêm à tona.

"Não é uma série sobre psicanálise, mas sobre pessoas que se relacionam, que às vezes têm um desajuste e acabam no consultório. Não fizemos um catálogo de patologias, mas da aventura que é conviver com singularidades que, no fundo, não são tão diferentes quanto parecem. Não é uma série sobre patologias, mas sobre o fato de que a normalidade é a patologia mais grave", explica ao Estado o criador, psicanalista e escritor Contardo Calligaris, em cuja obra o personagem se baseia.

A série tem ainda Claudia Ohana como colega de profissão de Carlo, que conta vivenciar um novo tipo de atuação na televisão. "A série me permite trabalhar de um modo diferente. Em novela, você precisa dar ênfase a todas as palavras, aqui, há coisas que são ditas de outra forma, com uma atitude diferente. Eu me enriqueço ao dar mais camadas à personagem."

Essencial para que tudo se concretize é Emilio de Mello. Ator com larga experiência no teatro, em espetáculos como In On It, dirigido por Enrique Diaz, no currículo, ele leva sua forte presença de cena para a tela, cria um protagonista multifacetado, e começa a trazer às produções nacionais a densidade dramática que consagrou séries já clássicas na TV. Ao Estado, Emilio fala como está sendo protagonizar sua primeira série.

O tipo de roteiro e de diálogos de Psi parecem exigir muito do ator. Como foi construir esse personagem? Um protagonista como o Carlo, que está em 95% das cenas, é absoluto. Você sente a importância do seu trabalho, mas há outro lado: as séries estão trazendo personagens muito mais elaborados, complexos e profundos. Sinto que, se você abordar um papel assim de uma maneira convencional, folhetinesca, como faria numa novela, não conseguirá dar a dimensão do personagem e fracassará. Tenho visto isso algumas vezes, personagens que são muito mais complexos do que a interpretação. Não que sejam mal interpretados, mas que não têm a complexidade que exigem. Não se pode atuar numa série como se atua numa novela, e é aí que estão errando. Quando isso acontece, o público não se engaja, não se envolve nas questões-chave, não vê tudo que cabe no personagem. Matthew McConaughey é um ótimo exemplo disso em True Detective. Existe ali um trabalho requintado de sutileza, de pesquisa, de erro e acerto.

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Nesse contexto, que ganhos você vê, como ator, em protagonizar uma série assim? Para fazer uma série, é preciso um empenho muito maior. Senti isso claramente fazendo Psi e acho bastante saudável, porque vai impulsionar a qualidade dos atores, os trabalhos ficarão mais ricos, vão exigir textos mais interessantes, já que o público de série demanda isso, é um espectador mais requintado. Tenho visto todo esse aumento da qualidade do trabalho, que ganham em complexidade. E esta é uma série de ator. O grande empenho dos diretores focou muito nas interpretações. Não temos grandes tiroteios ou explosões, o que temos são as relações humanas.

Se pensarmos nas séries mais importantes dos últimos anos, como Família Soprano ou Breaking Bad, vemos protagonistas fortes, mas intrinsecamente imperfeitos, complicados, que desafiam o espectador. Carlo é um pouco assim, não? Carlo tem muitas questões, ele se envolve com os casos de uma maneira muito intensa porque tem uma vida pessoal fracassada. É um personagem que se coloca como um grande herói, o que, na verdade, não é. De certa maneira, é um fracassado: vive sozinho, almeja formar uma família e levar uma vida convencional, mas não consegue. Desiste um pouco dessa vontade de ser um pai de família e vai viver sozinho com suas janelas. Assim, ele se envolve de um modo muito profundo com as pessoas que estão à sua volta. Isso para mim é muito paradoxal. Coloca-o numa dimensão atípica. Em Breaking Bad, você vê isso, em House of Cards também. Homens muito complexos que são ao mesmo tempo vilões e heróis, bons e maus, inteligentes e burros. Toda essa complexidade exige do ator um trabalho mais apurado. É o que eu tenho visto agora.

E qual é a especificidade do Carlo para você? Ele se vê como um herói, está sempre resolvendo as coisas, o que é um perigo bem grande, de carregar nisso de uma maneira que não seja crível. Há duas questões aqui: sair do clichê do herói, que soluciona tudo, e sair do clichê do psicanalista, que sabe tudo. Queria fazer um psicanalista com dúvidas, queria trazer a humanidade do psiquiatra. Eles são humanos, não são heróis oniscientes. Carlo quer usar o poder que tem para ajudar, mas se dá conta de que não tem esse poder, não acredita nessa ajuda. É seu lado mais humano, e foi nesse espaço sutil e paradoxal que quis trabalhar. Há muita racionalidade nele, mas é a intuição que o guia para que consiga ajudar seus pacientes e aqueles à sua volta.

É possível comparar o desenvolvimento de um personagem ao longo de uma temporada no palco com a gravação de uma temporada para uma série?Sim, porque nos dois casos o personagem muda muito. No primeiro caso muito por causa do público, no segundo, porque o tempo de trabalho é bastante grande. Só filmando foram cinco meses, sem contar a preparação. Ao longo das cenas, você vai se aprimorando, evoluindo. Considero esse um ótimo paralelo, porque a extensão do trabalho permite que você o vá aperfeiçoando.

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Coincidentemente, Zecarlos Machado, que é do teatro, está numa série sobre psicologia, Sessão de Terapia. E há outros nomes dos palcos na TV. No Brasil, as séries viraram destino para os atores do setor? Sim! As séries estão começando a aquecer o mercado, sem dúvidas. Estou impressionado com a quantidade de atores trabalhando em São Paulo. Há mais projetos, mais convites de trabalho. Os atores fazem teatro à noite e, de dia, as séries. Isso produz a renovação dos rostos na televisão, já que o elenco das novelas acaba sendo repetitivo. Também mostra a versatilidade dos atores, aprimora a arte da atuação e traz um repertório diferente no modo de fazer os personagens. É um momento muito rico este que vivemos.

 

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No lançamento de PSI, HBO promete abrir-se para talentos iniciantes

A HBO Brasil dá um passo numa direção simbólica com Psi: volta-se às produções mais dramáticas, marca que a consolidou nos EUA. Maria Ângela de Jesus, responsável pelas produções originais da HBO Latin America, afirma que isso é parte de uma tentativa de diversificar os temas abordados. E de, nas palavras dela, permitir que novos talentos, escritores e criadores locais possam desenvolver projetos para o canal. "Nos EUA, a HBO identificou a Lena Dunham e fez Girls. Queremos incentivar de fato a produção local, identificar pessoas que tenham o pensamento próximo do que a gente quer tratar", afirma.

Acontece que Calligaris é um nome já bastante reconhecido por si só, e adaptar uma obra sua não se trata exatamente de um risco. Como alguém com um roteiro na mão e uma ideia na cabeça pode se aproximar? "Temos um departamento de produções originais que recebe e avalia projetos, obviamente que num processo minimamente burocrático. Mas hoje estamos inseridos no mercado, recebemos as pessoas, orientando-as para o que pode ser uma série da HBO", responde. "Não somos um canal fechado", promete.

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