'A Filha Perdida' perturba ao tocar na sacralização da maternidade

A Filha Perdida, adaptada do romance de Elena Ferrante, divide o público por sua visão ambígua em relação à maternidade

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Por Luiz Zanin Oricchio
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Rola nas redes uma certa polêmica em torno de A Filha Perdida, filme adaptado do romance de Elena Ferrante por Maggie Gyllenhaal. Claro, nada comparável ao tsunami virtual há pouco causado pela distopia sardônica de Não Olhe Para Cima. Mesmo assim, o frisson é notável para um filme de natureza intimista.

Cena de 'A Filha Perdida', na Netflix Foto: Netflix

Tem ingredientes que justificam a repercussão. Uma escritora de sucesso mundial, que se esconde atrás de um pseudônimo. Uma atriz de sucesso, em sua primeira experiência como diretora. Um filme de mulheres e para mulheres. Que, portanto, interessa a elas e deve também interessar bastante aos homens. Outro ponto: é a primeira adaptação audiovisual de uma obra de Elena Ferrante feita por uma mulher. E isso com uma escritora que é, possivelmente, a mais poderosa voz feminina da literatura atual. Amor Molesto (1995) é dirigido por Mario Martone; Dias de Abandono (2005), por Roberto Faenza, e a série de TV A Amiga Genial está a cargo de Saverio Costanzo. O filme, em todo caso, tem provocado discussões nas redes.

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Muita gente não entrou na história de Leda (Olivia Colman), a professora de literatura que viaja sozinha para umas férias na Grécia. Seu repouso é perturbado pela chegada de uma família turbulenta. São muitas pessoas, todas parentes, e de várias gerações - de crianças a avós. Uma delas, em particular, chama a atenção de Leda: Nina (Dakota Johnson) e sua filha pequena. Algo perturba Leda. A ponto de despertar lembranças de sua própria juventude e de suas duas filhas quando pequenas. No tempo do filme, elas são jovens de 23 e 25 anos, vivendo com o pai, no exterior, e Leda é uma mulher de 48 anos.

Algumas pessoas sustentam que Leda é uma personagem inverossímil. Mulher de meia-idade, a se lembrar de que na juventude abandonara marido e filhas pequenas para viver um grande amor. Quando lhe perguntam o que sentiu nessa situação de separação da família, diz que foi tudo muito bom. Ótimo, aliás, com ela sentindo-se livre como nunca. Leda é mesmo surpreendente. Ao conviver com Nina e sua filha pequena, comete um ato sem sentido. Inexplicável, até mesmo para ela. Ato que, insignificante em si, muda o rumo da história, conforme verá o espectador.

Existe falta de lógica no comportamento de Leda? Talvez, quando se olha pelo lado da estrita racionalidade. Mas personagens (reais ou ficcionais) não precisam se enquadrar naquilo que chamamos de “compreensível” para serem bons. Existem em meio a paradoxos, contradições, zonas de sombra, irracionalidades, porque tudo isso faz parte do humano. No caso de A Filha Perdida há outra camada: a experiência da maternidade exposta em sua ambiguidade, o que mexe com a sacralidade da figura da mãe. Nem Leda se compreende muito bem, como diz a certa altura. 

Mas, e daí? O mistério surge à nossa revelia e faz parte da vida. Pode nos angustiar, mas é assim mesmo que funcionamos. Essas contradições só podem surpreender quem nunca leu Elena Ferrante. Definida às vezes como “mergulho na alma feminina”, essa literatura tira boa parte de sua força na exposição de ambiguidades em torno de temas tabus. Na tetralogia, uma garota menor de idade é abusada por um adulto, mas confessa, para si mesma, ter sentido tanto asco como prazer na relação. O relacionamento com pais e mães é sempre posto em perspectiva, em especial na sociedade napolitana caracterizada pelo machismo e pela apenas aparente submissão das mulheres.

A maternidade, pedra angular da vida familiar, é colocada em questão nas relações poliédricas das personagens em relação a suas genitoras. Sentem amor, mas também ciúmes, hostilidade, às vezes ódio e vergonha, tudo mesclado e empacotado num todo inextricável. São sentimentos complexos, que não se enquadram muito bem em nosso mundo simplista, unilateral, cheio de certezas e (supostas) boas intenções. Em linguagem simples, Ferrante nos devolve à complexidade, o que não é pouca coisa. Todo esse emaranhado de sentimentos confusos é apresentado, no livro, numa narrativa em primeira pessoa, o que complica sua adaptação para o cinema. Pode-se dizer que Maggie Gyllenhaal sai-se muito bem no desafio. Alterna com habilidade as sequências do passado e do presente e faz do silêncio da protagonista seu maior aliado. Ainda mais porque conta com uma grande atriz, Olivia Colman, capaz de expressar no olhar o que não pode ser dito em palavras. Jessie Buckley tem luz própria ao viver Leda quando jovem. Dakota Johnson, com sua Nina, ilumina a tela ao entrar em cena.

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Esse filme de mulheres tem muita coisa a dizer neste momento. Mesmo com seu final ambíguo e aberto - ou talvez até mesmo por causa dele. Quem leu o livro, porém, sente falta de uma camada a mais no filme. No romance, Leda é uma napolitana intelectual. A família que chega para perturbar-lhe as férias é também de Nápoles. Essa comunidade de uma origem sentida e renegada pela protagonista sem dúvida complexifica ainda mais sua relação com as outras personagens e consigo mesma.

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