30 de setembro de 2016 | 11h08
“Minhas roupas estão salgadas de tanto mar e travessias; pesam. Oceanos de crianças mortas que as ondas devolvem na orla. As ondas urram de dor nas pedras. As ondas estão gritando na língua dos rochedos. Para esconder o grito de alguma mãe.”
Não é preciso imagem que ilustre esse texto.
Todavia, é impossível não recordar da foto feita no ano passado que retratava o corpo do pequenino Alan Kurdi, menino sírio encontrado morto em uma praia da Turquia, no auge da crise migratória. Nesta sexta, 30, o espetáculo Um Berço de Pedra, estreia com a pendência de que não há um nome que possa definir a mãe de Kurdi. “Existe a palavra viúvo, quando se perde o cônjuge, e órfão, quando os pais morrem, mas ainda não conseguiram inventar uma para a mãe que vê o filho morrer”, conta a atriz Cristina Cavalcanti.
A peça de Newton Moreno é uma reunião de cinco textos curtos com um fio condutor direcionado para o ventre, explica o diretor William Pereira. “Inicialmente, não eram escritos feitos para a cena, a poesia presente os uniu ao suscitar o olhar da mulher para o seu corpo e a maternidade.”
No palco, a atriz Débora Duboc encabeça o texto que dá nome ao espetáculo. Ela também atravessa, em momentos decisivos, as outras narrativas. “Sou como uma narradora, que participa e observa cada história.”
Em um palco soterrado por areia, O Canteiro abre a montagem trazendo o sofrimento de uma mãe que busca o filho desaparecido nos tempos da ditadura. Em seguida, há a inquietação de Caminho do Milagre, que expõe o diálogo entre uma mulher vítima de estupro e o criminoso, interpretado por Eucir de Souza. “Newton organiza situações presentes na realidade brasileira de uma maneira inquietante”, ressalta o diretor.
As atrizes Lilian Blanc, Luciana Lyra e Agnes Zuliani encaram “o assassinato político” de uma Medeia nordestina, uma mãe que busca vender o filho e uma grávida que mora numa zona de conflito. “Elas estão em guerra com seus corpos e com o caos que acontece no mundo. Não há descanso para elas”, aponta ainda Agnes.
A força da palavra deve ser o foco do espetáculo, pontua Pereira. “Temos relatos muito fortes e esse estado trágico que elas carregam ganha vida quando compartilhado.” Lilian diz que é preciso estar com os ouvidos abertos para receber as palavras. “A cada frase, muitas imagens são criadas. Nossa interpretação vai no sentido de concretizar esse universo doloroso e igualmente belo.”
Foi dos conflitos no Oriente Médio que nasceu a frase “seque o petróleo que corre nas veias deles”, presente no texto que batiza o espetáculo Um Berço de Pedra. Nesse trecho, o dramaturgo Newton Moreno lança sua ofensiva sobre a imagem do homem como o fonte de guerras sanguinárias. “Nesse embate, o corpo feminino aparece como resistência, como base da sobrevivência e do afeto. É o estado político de ser mulher”, aponta o diretor.
Entre as cinco histórias apresentadas, o desejo de maternidade é sacudido pelo conflito, da mesma forma que a recusa em gerar filhos. A atriz Agnes Zuliani elege uma guerrilheira que surge no campo de batalha arregimentando fetos. “No mundo tudo se resumiu à autorização do que a mulher poderia fazer com o próprio corpo.”
Na peça, esses limites estão suspensos, já que a escrita de Moreno não deseja praticar a justiça com seus personagens, conta Pereira, ao citar a personagem que foi estuprada. “Ela é casada e nunca conseguiu engravidar. Seu sonho de ser mãe é realizado por meio de uma ação violenta.”
A resposta do estuprador inspira uma complexa compaixão. “Ambos revelam segredos de suas vidas, e passamos a compreender por que as pessoas praticam a violência. De certa forma, os homens também estão expostos ao machismo”, diz Souza. O que ocorre no texto inspirado na história de Medeia é semelhante, conta Luciana Lyra. “O ato de executar os próprios filhos tem a clara intenção de denunciar um estado machista, no qual o trono do homem é sempre maior que o da mulher.”
Com tantos retratos trágicos, o contato das atrizes com o texto exigiu cuidados até mesmo com a saúde. Antes mesmo de iniciar os ensaios, a atriz Débora teve um quadro de rouquidão. “Sempre cuidei da minha voz, então percebi que se tratava de algo emocional. Eu sou mãe e precisava compreender como o texto dialogava comigo.”
Após alguns ensaios regados a lágrimas, a interpretação enveredou para algo mais seco, diz Pereira. “A potência não está na fala emocionada das personagens. Elas já passaram por todo o sofrimento e é a hora de expor as feridas”, explica. “Além disso, o texto sempre sugere novos mundos e situações para se imaginar.”
UM BERÇO DE PEDRA. Centro Cultural São Paulo. R. Vergueiro, 1.000. Tel.: 3397-4002. 6ª, sáb., 21h; dom., 20h. R$ 20 / R$ 10. Estreia 30/9. Até 6/11.
Para o diretor, o poder do relato de Moreno se assemelha à crueza terrena de Plínio Marcos. “Eles fazem parte de uma mesma geração que escrevia para denunciar as injustiças que ocorriam no mundo e em seu país. A diferença é que Newton eleva essas figuras com lirismo”, compara.
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