Já era de madrugada quando o diretor e encenador Jorge Farjalla recebeu um telefonema da atriz Rosamaria Murtinho. “Fiquei encantada com seu trabalho e gostaria de ser dirigida por você. Espero que você me desconstrua em cena”, disse ela, maravilhada com a proposta cênica utilizada por Farjalla na peça Paraíso Agora ou Prata Palomares. “O que me motivou foi a disposição de Rosamaria para encarar desafios, algo pouco comum entre atrizes consagradas”, conta Farjalla, que ofereceu uma proposta arriscada: montar Dorotéia, peça que o próprio autor, Nelson Rodrigues, incluiu em seu ciclo do “teatro desagradável”. Rosamaria topou e, com o espetáculo, comemora 60 anos de carreira.
Depois de estrear no Rio em 2016 e de excursionar por outras cidades, Dorotéia chega nesta sexta-feira, 12, a São Paulo, no Teatro Cetip. E o “risco” aceito por Rosamaria é compartilhado com Leticia Spiller e um elenco de mais dez atores: mostrar como o profano e o sagrado caminham juntos. Para isso, as atrizes sofreram um processo estético para ficarem feias. Escrita em 1949, Dorotéia estreou no ano seguinte e aborda, entre outros assuntos, do mito da beleza. Ex-prostituta, que largou a profissão depois da morte do filho, Dorotéia (Leticia) segue em busca da destruição da própria beleza para se igualar à feiura de suas primas, que vivem em uma casa sem quartos e onde há 20 anos não entram homens.
Matriarca da família, Dona Flávia (Rosamaria) é uma das três viúvas puritanas (as demais são Maura e Carmelita) que não dormem para não sonhar, o que as deixam condenadas à desumanização, fruto da constante negação do corpo e da sexualidade. “Em cena, há um grande clima de tesão reprimido”, observa Farjalla que, ao contrário do original, inclui um coro masculino, que representa um dos símbolos mais fortes da peça, o jarro, objeto que, na década de 1950, ainda era muito usado pelas mulheres (prostitutas em especial) para se lavarem intimamente. O coro permeia a encenação executando ao vivo os sons e a trilha do espetáculo.
“Nelson Rodrigues antecipou o teatro do absurdo de Ionesco ao colocar em cena objetos cujo significado é extremamente importante para a dramaturgia”, comenta Rosamaria, que deixou o cabelo embranquecer, além de participar ativamente da dissecação do texto. “É um dos mais longos que já montei - tenho exatamente 297 falas”, diverte-se ela.
Idêntica aplicação contagiou Leticia Spiller. “Confesso que não entendi a força do texto do Nelson na primeira leitura - não fiquei tão interessada”, conta. “Mas, à medida que avançávamos nas análises, descobri detalhes fabulosos. Dorotéia, por exemplo, simboliza o amor e suas primas, a incapacidade de amar. Do confronto dessas forças, nasce a tragédia.” Uma das mais lindas atrizes brasileiras, Leticia lida bem com a beleza e, claro, com a falta dela - em troca de abrigo, Dorotéia aceita se tornar tão feia e puritana como as primas. “Ela é a transgressora, aquela que movimenta uma casa estagnada e que abriga mulheres incapazes de amar. É uma peça que não trata apenas de repressão ou que prega o fim da beleza, mas vai além ao apontar a condição humana.”
A atriz participa ainda de um importante momento da montagem: o de se desnudar. Tudo porque Dorotéia, em sua luta de purificação, é obrigada pelas primas a ter uma relação com Nepomuceno, homem marcado pelas chagas. “Seria a hanseníase, no termo mais exato”, observa Rosamaria. Assim, além da nudez artística de Leticia, o diretor Jorge Farjalla foi mais ousado ao encenar a relação entre os personagens, com direito a também um ator nu. “É importante lembrar que o desejo que impera na peça é feminino e esse sentimento é diferente do masculino”, comenta o encenador, que decidiu também aproximar o público da montagem. Assim, em todas as apresentações, cem lugares estarão espalhados no palco - em São Paulo, os espectadores serão recebidos em uma arquibancada.
“Nelson sempre sentiu a necessidade de o público ter a mesma sensação do personagem”, conta Rosamaria, plenamente satisfeita com a comemoração de sua vitoriosa carreira, que inclui diversos pontos altos do teatro brasileiro, como sua passagem pelo Teatro Oficina (lá, encenou, entre outras, A Engrenagem, baseada na obra de Jean-Paul Sartre), a encenação de Vejo Um Vulto na Janela, Me Acudam Que Eu Sou Donzela (1981), de Leilah Assumpção, e a série de peças escritas por Maria Adelaide Amaral, como Ô Abre Alas, em 1998.
DOROTÉIA Teatro Cetip. Instituto Tomie Ohtake. Rua Coropés, 88. Tel.: 4003-5588. 6ª e sáb., 21h. Dom., 19h. R$ 70 / R$ 110. Até 2/7