Perfil desobediente valoriza Mostra Internacional de Teatro de SP

A 5.ª edição do evento se sai melhor nas obras que vão além do plano da curadoria

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Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

A programação da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo não é um espelho do noticiário. Mas se deixou impregnar, nos últimos cinco anos, pelos fenômenos que o País vivencia: o acirramento dos conflitos políticos e a emergência de discursos de identidade. O tom permaneceu em 2018 e o que se viu nos palcos da cidade, durante os 11 dias de festival, foram formas diversas de dar corpo a esse incômodo difuso. O uso de arquivos documentais ou episódios reais seguiu como eixo para estruturar boa parte das montagens. E o filtro autobiográfico – tão em voga nas produções brasileiras – também encontrou ressonância nos espetáculos internacionais que foram selecionados para esta edição.

Cenas de 'Árvores Abatidas', espetáculo de Krystian Lupa que estána programação da 5.ªMostra Internacional de Teatro de São Paulo Foto: Michal Grudzinski

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Fortemente representado nos anos anteriores da mostra, o racismo voltou à baila com Sal. Na criação da britânica Selina Thompson, a escravidão é revisitada a partir de um percurso pessoal. Em um navio cargueiro, a performer refez a viagem marítima à terra de seus antepassados. Seu testemunho é a linha condutora de um espetáculo que materializa essa ferida, ainda aberta. E convoca, como metáfora, pedras de sal que são quebradas em cena. 

+++Com abertura sóbria, MITsp deixou os discursos para a peça ‘Suíte Nº 2’

A simplicidade de meios e a sinceridade de sua composição vencem os limites da reminiscência individual para se comunicar com a plateia. Com explícitas referências à técnica da spoken word (forma de poesia com foco na oralidade), a montagem traz ao palco os ecos de resistência da cultura do hip hop e dos griôs africanos. O discurso ativista, contudo, não expande a problemática para além de sua dimensão conhecida e a peça não alcançou o impacto de criações de edições anteriores, como a subversiva Black Off, vista em 2017. 

+++MITsp chega à 5ª edição com ambição de se espalhar pela cidade

A música foi outro eixo a organizar o pensamento dessa MITsp e trabalhos significativos representaram esse anseio. Nessa linha, tivemos King Size, do festejado Christoph Marthaler, e Suíte nº 2, do jovem francês Joris Lacoste, que explorou as possibilidades expressivas e sonoras do discurso oral. A entrada da internet na vida contemporânea trouxe também a possibilidade de armazenar e examinar discursos de fora do âmbito público. Assim, a declaração de guerra de George Bush e o pronunciamento de um ministro do Estado português podem ser ouvidos ao lado de uma ligação de telemarketing ou da conversa entre anônimos postada no YouTube. É uma babel de muitos idiomas e de interpretações que beiravam a virtuose. 

Hamlet, dirigida pelo suíço Boris Niktin, também poderia ser encaixada nessa ala de intersecções entre música e teatro. A peça, contudo, não se presta bem a classificações. Não faria sentido contemplá-la como mais uma versão do clássico de William Shakespeare. Também não se trata de um musical desconstruído nem de uma performance de cunho biográfico. Com um corpo andrógino, cabeça e sobrancelhas raspadas, o ator Julian Meding se coloca em algum lugar entre o ator e o personagem. É estranho, afetado, magnético. Não sabemos se sua interpretação é ruim ou se ele nada está a representar. Acompanhado em cena por um quarteto barroco, ele joga o tempo todo com as expectativas do público. Enquanto o espectador aturdido tenta compreender suas artimanhas, o intérprete se debruça sobre a morte com rara radicalidade. É uma obra mais de arrebatamento do que de consenso. 

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Ocupa, por tanto, um espaço de oportuna ousadia em meio a criações bem-intencionadas como Palmira, da dupla Bertrand Lesca e Nasi Voutsas. Apoiada no jogo estabelecido entre dois clowns, Palmira tenta dar conta da guerra da Síria. Explora o humor dos jogos físicos e se sai bem nisso, mas não consegue ultrapassar certa simplificação no trato com material tão complexo. 

Poder. Reforça-se a sensação de que a MITsp se faz maior em seus pontos de fuga, naquilo que escapa às boas intenções e aos pressupostos temáticos da curadoria. Além da colagem desconjuntada e apaixonante de Hamlet, a edição 2018 destaca-se pela presença de Árvores Abatidas, do mestre polonês Krystian Lupa. O espetáculo lida com um assunto na ordem do dia: o perigo dos vínculos entre artistas e o poder. Também contempla diversas das linhas de força do teatro contemporâneo ao fazer uso de outras linguagens, como o audiovisual, trabalhar com ritmos e silêncios prolongados e mostrar como questões políticas atravessam o domínio privado e as relações humanas. Sua potência, porém, não está em nada disso. Árvores Abatidas se apoia em certo mistério insondável – característica, aliás, que se espraia por boa parte do repertório desse encenador, que pôde ser visto pela primeira vez em São Paulo. 

Nessa adaptação do romance homônimo de Thomas Bernhard, o diretor olha com generosidade para seus personagens, esmagados pela banalidade da existência. Diante de uma dezena de indivíduos tolos e vaidosos, guiados pelo medo e o horror ao vazio, Krystian Lupa afirma, à sua maneira, um anacrônico amor incondicional pelo humano. Sua obra carrega um pessimismo cheio de fé. É uma amostra de como pode ser bonito estar fora de moda. 

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