17 de agosto de 2015 | 05h00
A afinidade entre um intérprete e determinado personagem tem servido, ao longo dos anos, como motor de criação de incontáveis encenações. Há quem sonhe em ser Hamlet, Medeia, Édipo, Lady Macbeth.
Mas o interesse de Rodolfo Vaz recaiu sobre figura muito menos faustosa. Em O Capote, atualmente em cartaz no CCBB, o ator encarna Akáki Akakiévitch, o anti-herói – “pequeno, raquítico, calvo” – da clássica novela de Nikolai Gogól.
Formado nas fileiras do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, Vaz já se havia aventurado pela prosa do autor ucraniano. Montara antes O Inspetor Geral, sob a direção de Paulo José. Um primeiro contato que tomou as feições de mergulho vertiginoso na atual montagem.Há muito de fascinante nos contornos modestos de Akáki. Quando mira o trágico, Gogól o faz sem tirar os pés da ironia. Existe sempre um sarcasmo desmesurado, como um choro engasgado a se colocar à sombra do riso aberto.
Na São Petersburgo do século 19, acompanhamos as desventuras de um funcionário público – homem sem interesse, sem amigos e desprovido de pretensões –, que se vê enredado em uma série de desenganos a partir do momento em que ousa ambicionar um casaco novo.
Ciente do fascínio de Rodolfo Vaz pela obra, Drauzio Varella escreveu, anos atrás, uma adaptação na qual verteu o texto para o formato de um monólogo. Quando, contudo, o plano de montar a peça começou a ganhar corpo, o dramaturgo Cássio Pires veio juntar-se a eles para entregar uma versão que traz dois atores (Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas) fazendo as vezes de narradores. O expediente retira do protagonista o direito de narrar a própria história. Privilégio que lhe foi negado na origem, pelo próprio Gogól, e sublinhado aqui, o fato de Akáki não poder ter a palavra sobre aquilo que se diz sobre ele amplia a compreensão sobre o alcance dos tentáculos que estrangulam essa ‘marionete’.
O jogo entre os narradores e o personagem principal é alavancado também pela direção de Yara de Novaes. Como dois manipuladores de bonecos, eles tomam o palco. Conduzem os passos de Akáki. Corrigem suas palavras. Fazem-no mover-se, parar, cantar e sapatear.
Com O Capote, as opções da adaptação foram capazes de trazer a trama ao presente sem ter que transportá-la a outra época – o que lhe reduziria os contornos ou as particularidades históricas. O episódio a que assistimos ocorreu no passado. O que não quer dizer que lá tenha se encerrado. Nem que não permaneça a reverberar. Do Capote, nos lembra Otto Maria Carpeaux, “descende toda aquela literatura de compaixão algo sádica de Dostoievski e a sensibilidade cinzenta de Chekhov.”
Vale lembrar, nesse contexto, que Cássio Pires tem trilhado um significativo caminho na conversão de obras literárias ao contexto dramático. Recentemente, trouxe à cena recriações de textos tão díspares quanto A Sonata a Kreutzer, de Tolstoi, e Jovens de um Novo Tempo, Despertai, do japonês Kenzaburo Oe.
Munido apenas de seu casaco puído, desfazendo-se em pedaços, Akáki não consegue enfrentar o frio rigoroso do inverno russo. Pensa em tentar uns remendos. É dissuadido, porém, a comprar um capote novo, que lhe custará quase dois meses de salário e o obrigará a uma rotina de privações e economias.
A interpretação de Rodolfo Vaz acomoda a fragilidade e a estupefação desse empregado de escritório. O corpo curvado, a voz titubeante, o olhar que não firma o interlocutor – parece opaco, ensimesmado.
É fácil vincular a figura desse copista ao Bartleby, de Herman Melville. Ambos passam as vidas trancados em escritórios, ignorados por quem está ao redor, engrenagens invisíveis de uma máquina, alienados do próprio desejo. A diferença essencial está na maneira como cada uma dessas individualidades irá se colocar diante de situações semelhantes. Surge em Bartleby uma vontade férrea de contrapor-se ao estabelecido, uma “rebeldia existencial”. Postura muito distinta do martírio sem fim da criatura de Gogól.
Antecipar as leituras do espectador é expediente bastante comum nas montagens contemporâneas. Não basta dar a ver. É preciso dizer ao público o que ver. Se há uma ressalva nesse O Capote, parece ser essa. Fica a sensação de que os excessivos estímulos em vídeo do cenário poluem a composição filigranada do ator. A enxurrada de imagens não traz mais do que ilustrações do que foi dito. Ou vem impor interpretações que reduzem o espaço de fruição do espectador – como no caso em que corpo morto de Akáki é associado ao Cristo crucificado.
O CAPOTE
CCBB - R. Álvares Penteado, 112, 3113-3651. 2ª e sáb., 20h; dom., 19h. Até 21/9. R$ 10
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