
05 de setembro de 2019 | 03h00
À primeira vista, A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada foi uma história criada para os cinemas. Apesar da impaciência do autor, Gabriel García Márquez, para levá-la logo às telonas sua vocação era ainda maior. Nas mãos de Augusto Boal, o texto ganhou versão encenada no Théatre de L’Est Parisien, de Paris, em 1983 e um orçamento de US$ 250 mil.
Hoje, a adaptação do mestre do Teatro do Oprimido estreia no Teatro do Sesi, com direção de Marco Antonio Rodrigues, inédita no País e com tradução de Cecíla Boal. Com uma trama densa, o público vai acompanhar a história da jovem Candida Erêndira (Giovana Cordeiro) vítima das invenções fantásticas do escritor Nobel. Em uma noite, a jovem está exausta e sem perceber derruba o candelabro que espalha suas chamas e incendeia a casa. A avó da menina a considera culpada e o preço para arcar com o prejuízo será bem alto. “A avó desalmada a obrigará se prostituir”, conta o diretor.
Para Celso Frateschi, que interpreta a anciã maligna, o abuso retratado na montagem aponta para questões universais e políticas. “Trata-se de uma coisa monstruosa o que a avó faz com a menina”, diz. “Diante desse realismo maluco, proposto por Gabriel, vamos percebendo suas sugestões, que inspiram uma reflexão sobre si, a partir das demais personagens.” E eles são muitos. Além da avó e de Erêndira, há Ulisses, o jovem que se apaixona pela garota e se dispõe a transformar a realidade dela, as prostitutas que trabalham com a menina e os religiosos, todos condenados a viver numa região desértica e miserável. Como se não bastasse, a exploração imposta pela velha atrai ainda mais violência para Erêndira. Malquista pelas prostitutas, ela é humilhada por ser considerada concorrente.
Nesse ambiente, a vocação cruel da anciã se desdobra de significados no universo concebido pelo autor de Cem Anos de Solidão. O diretor intui que a personagem representa um espírito muito comum de se encontrar pela América Latina histórica. “A avó é como um bom sinhozinho, no estilo Casa Grande e Senzala”, continua Rodrigues. “É o tipo de crueldade que se confunde com as relações sociais. A menina precisa da avó para sobreviver. No Brasil, isso é como um movimento político, a exploração como um carma. Parece que nunca vai nos deixar.”
Para Frateschi, o cenário devastado fala sobre uma pobreza histórica que é impulsionada pelas palavras do autor. “É como se estivessem vendendo nossas riquezas naturais. Aquilo que só nós temos. É impossível não reconhecer esse vazio descrito com tanta poesia e a imaginação de Gabriel”, completa o ator.
Apesar da aura política, não há motivo para imaginar que Erêndira seja um espetáculo abertamente acusatório ou de denúncia. Quando estreou em Paris, a polícia chegou a ser chamada até o L’Est Parisien durante a temporada de Boal, mas não se tratava de censura ou descontentamento. Foi o contrário. Em seu livro de memórias Hamlet e o Filho do Padeiro, Boal explica o motivo: “Todas as noites a polícia vinha protestar, chegou a ameaçar fechar o teatro por excesso de lotação: escadas cheias!” Um ano antes do sucesso da peça, em 1982, o diretor Ruy Guerra rodaria no México sua versão da obra, com a atriz grega Irene Pappás, no papel da avó, e a jovem Claudia Ohana, então com 20 anos, interpretando a neta condenada.
Na encenação de Rodrigues, talvez essa subversão esteja direcionada para a musicalidade da direção de Marco França e nas canções originais de Chico César. O elenco numeroso – são 14 artistas em cena – assume a identidade de um trupe circense. “Eles reforçam a peregrinação das personagens e uma sofisticação da breguice”, conta o diretor. “Ao percorrer essa árdua América Latina, a utopia tende a se unir com a nossa esperança.”
Revolução contra chibatada e água benta
As histórias de García Márquez são revelações sobre a América Latina. Como esse imaginário influenciou suas composições?
Catolé do Rocha é como Macondo, dos Cem Anos de Solidão, um lugar longe de tudo e cheio de sortilégios. Perto de uma magia hiper-realista que é quase delírio e sonho, como também é o lugar por onde erram Erêndira e sua avó. Um sertão a ser desertado, um deserto errático que se recria com o bafo quente soprado por mil demônios que juram ser Deus. Conheço bem essa América Latina sempre à beira de uma revolução a ser reprimida a chibatadas e água benta.
O texto também serviu de inspiração para as letras?
É como uma obra de Leo Brouwer ou Villa-Lobos. Sinfonia mestiça, cacofônica de sobreposições e conflitos.
‘ERÊNDIRA’. TEATRO DO SESI. AV. PAULISTA 1.313. TEL.: 3528-2000. 5ª, 6ª, SÁB., 20H, DOM., 19H. GRÁTIS. ATÉ 8/1.
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