Peça 'A Golondrina' se inspira em ataque à boate gay Pulse

'A única maneira de não remover a dignidade das vítimas é não esquecê-las', diz o dramaturgo espanhol Guillen Clua

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Por Leandro Nunes
Atualização:

Não é novidade que o cinema costume recriar tragédias e atentados com um olhar documental. Na telona, a curiosidade tem seu deleite no testemunho de uma reconstituição. No teatro, a linguagem documental deixa de lado o drama e surge, quase sempre, para reivindicar o direito à narrativa. A Golondrina, que estreia no Teatro Nair Bello nesta sexta-feira, 19, tinha todos os elementos para ser uma reconstituição cênica de uma tragédia, mas a peça do espanhol Guillen Clua avistou um destino em outras paragens.

Tania Bondezan e Luciano Andrey durante a peça 'A Golondrina' Foto: Nilton Fukuda/Estadão

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É verdade que a peça se inspira no ataque à boate gay Pulse, em Orlando, que deixou 50 mortos e 53 feridos, em junho de 2016. No entanto, o cenário é a sala da casa de Amélia, uma professora de canto. Entre o piano e a estante com livros e fotografias, nada ali parece remeter ao clima de terror imposto aos jovens que saíram de casa apenas para se divertir, nas comemorações da Parada do Orgulho LGBT, nos EUA. “De fato, a peça fala de algo ainda maior”, aponta a atriz Tania Bondezan. 

Não é muito simples adiantar o que vai acontecer, sob o risco de dar algum spoiler. No ensaio acompanhado pela reportagem, foi possível perceber que existe uma delicada relação entre a professora de canto e seu aluno (Luciano Andrey), que insiste em estudar, mesmo que não tenha talento. “O autor une duas pessoas que sofreram uma perda recente, de uma maneira, aparentemente, inusitada”, conta o diretor Gabriel Fontes Paiva.

Não demora muito para que o luto surja. E como duas pessoas que experimentam a dor provocada pela ausência de alguém, professora e aluno logo se conectam. “É uma mãe que perdeu um filho e um filho que perdeu uma mãe”, explica o diretor. 

No texto de Clua, isso será um caminho sem volta. Ao revelar detalhes sobre as mortes, as personagens se deparam com a ideia de que a dor é relativa, justamente porque é impossível estar na pele do outro. A empatia aqui é colocada sob análise. “Essa aproximação vai provocar alguns choques”, afirma Paiva. “E eles precisarão entender como a morte afeta a vida de quem ficou.”

No texto original, o autor compôs a letra de A Golondrina (A Andorinha) e sugere que seja cantada no início. É a mesma música que o jovem deseja ensaiar com a professora para cantar no funeral da mãe. “Você veio até a margem. Não buscou nem sábios, nem ricos”, canta ele desafinando. “Você só quer que eu te siga. O senhor me olhou nos olhos. Sorrindo falou meu nome.” Na encenação, quem assina a trilha é a cantora e compositora Luisa Maita, a mesma de Desencabulada e Lero-Lero, que fazem parte da trilha sonora do filme Boyhood (2015). 

No dia do ensaio, não foi possível acompanhar esse momento final, que agora ficará a cargo de quem assistir. De qualquer forma, vale um conselho: é importante se preparar para lágrimas, elas podem surgir na plateia.

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Entrevista com o dramaturgo espanhol Guillen Clua

É comum que acontecimentos trágicos, como ataques, despertem nas artes, como no cinema, outro olhar documental, de reconstituição. Em que momento você pensa no texto de A Golondrina como uma peça que usa o caso do ataque à discoteca como pretexto para um diálogo sobre perda e afeição?

Comecei a escrever La Golondrina alguns dias depois do ataque. O ataque me afetou profundamente, especialmente quando ouvi histórias pessoais de suas vítimas e parentes. Naquela época, na Espanha, estávamos vivendo alguma complacência por parte da comunidade LGTBI. Ao contrário de outros países do mundo, aqui temos leis específicas que defendem os direitos da comunidade, o casamento igualitário, etc. Muitas pessoas tinham a sensação de que tudo já havia sido alcançado, sem pensar que na maior parte do mundo não é esse o caso. É por isso que o ataque Pulse foi um alerta para não dar todos os adiantamentos como garantidos. Eles podem ser arrebatados de nós com muita facilidade, com uma mudança de governo (como aconteceu no Brasil, por exemplo) ou com a ascensão de partidos de extrema direita também na Espanha. A andorinha é uma voz de alarme.

Nos últimos anos, ataques como este têm provocado vários debates, especialmente quando são direcionados às comunidades. No mês de março, dois jovens atacaram uma escola deixando 10 mortos, em São Paulo. No Brasil, ataques homofóbicos ocorrem todos os dias. Como é possível enfrentar casos semelhantes de extremismo e ainda "não tirar a dignidade das vítimas", como diz o jovem Ramón da peça.

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A única maneira de não remover a dignidade das vítimas é não esquecê-las. Você tem que contar sua tragédia, suas histórias, suas vidas e apontar aqueles que querem destruir a diversidade com seu ódio e fanatismo. Neste sentido, a arte (e teatro no meu caso) podem ser armas muito poderosas para combater a intolerância, colocam questões ao espectador que nos obrigam a repensar o nosso papel na sociedade e, acima de tudo, tentar fazer um mundo melhor para tudoA comédia romântica Smiley também é sua. Como autor, o que lhe interessa quando passa por diferentes estilos, como drama e comédia?

Sim, estou muito interessado em explorar diferentes gêneros. Comédia, teatro, música, dança ... e também filmes e TV. Acredito que cada história exige um formato ideal para ser contada e não gosto de fechar apenas uma.

Quais projetos está desenvolvendo no momento? 

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Na próxima temporada vou estrear duas novas peças, em Madri e Barcelona, além de continuar trabalhando em vários projetos de televisão. Também estou interessado em transformar em um filme o tópico do Twitter sobre dois soldados da Primeira Guerra Mundial que eu escrevi há alguns meses e que, de fato, foi muito bem sucedido no Brasil: #emilyxaver.

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