Peça 'A Fuzarca dos Descalços' é uma releitura de 'Esperando Godot', de Beckett

Espetáculo no Sesc Belenzinho propõe a reação de dois personagens exaustos diante do racismo

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Por Dirceu Alves Jr.
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Foi na ressaca do pós-guerra, em 1949, que o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989) escreveu aquela que talvez seja sua obra-prima, Esperando Godot. A peça, montada pela primeira vez em 1953, mostra dois sujeitos, Vladimir e Estragon, que aguardam a chegada de alguém capaz de apontar uma saída para suas vidas inertes.  O ator Éder dos Anjos, junto do seu Coletivo dos Anjos, sediado em Jandira, revisita desde 2014 clássicos que proporcionem releituras em torno dos contrastes sociais. A Gaivota, de Chekhov, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e Aquele Que Diz Sim, de Bertolt Brecht, serviram de inspiração ao grupo. “Nosso objetivo é deslocar esses textos para o eixo das periferias”, explica. “Alguns podem considerar um desrespeito criar versões em cima dessas obras, mas nós consideramos o contrário, só um clássico permite esse deslocamento.”

Cena da peça 'A Fuzarca dos Descalços', do Coletivo dos Anjos. Foto: Amanda Barreto

O mais recente trabalho da companhia é A Fuzarca dos Descalços, livre adaptação do Godot de Beckett, com dramaturgia de Victor Nóvoa e direção de Aysha Nascimento, em cartaz no Sesc Belenzinho. “O interesse por Godot era antigo, mas existia uma dificuldade de imaginar qual seria esse deslocamento, sobre o que falaríamos de relevante neste Brasil em que o absurdo fica tão perto do real”, conta Éder que, além de viver um dos protagonistas, é o idealizador do projeto. A reflexão proposta passa pelo rompimento da cartilha de Beckett sem deixar de preservar a essência. O que, no Brasil, seria comparável ao trauma vivido pela Europa após a 2ª Guerra? Para Éder, um homem negro, de 34 anos, que mora na periferia e batalha para expandir sua arte, bastou olhar para a própria história e a de seus antepassados. O impacto equivalente seria repensar a libertação da escravatura e como, mais de 130 anos depois, a mentalidade colonizadora ainda se esforça para tornar os negros invisíveis. Na releitura de Nóvoa, Atsu e Baakir (interpretados por Éder e Salloma Salomão), dois homens de gerações diferentes, estão do outro lado de uma cerca. Baakir veio da África e chegou ao Brasil como escravo. Atsu, por sua vez, nasceu por aqui livre, mas desbrava preconceitos. Esperar uma salvação milagrosa não faz parte da vocação deles, que sabem que é fundamental reagir o mais rapidamente possível, inclusive como sobrevivência.

A peça é produzida pelo Coletivo dos Anjos Foto: Amanda Barreto

A diretora Aysha Nascimento considera oportuna a desconstrução de Esperando Godot porque, segundo ela, esse tempo de espera não chegou até hoje para os negros. “Na diáspora, fomos desumanizados e ainda colhemos esses frutos estragados. Quem é negro não descansa, não tem paz, e a violência no nosso cotidiano só aumenta a nossa exaustão”, afirma.  Assim como Vladimir e Estragon, Atsu e Baakir não concordam o tempo inteiro e discutem, brigam enquanto tentam entender suas reivindicações. A Fuzarca dos Descalços joga uma lente de aumento sobre a desigualdade social, que evidencia o preconceito. Uma das metáforas usadas passa por convidar o público, assim que entrar no teatro, a tirar os sapatos e assistir ao espetáculo com os pés no chão.  Aysha, Éder e Victor Nóvoa vêm de uma bem-sucedida parceria em outro clássico, a produção online Antígona Terceirizada, lançada em novembro. Ela foi umas das diretoras da adaptação de Nóvoa para a tragédia grega de Sófocles. “Estamos em um tempo de tomada de decisões. Assim como os personagens de A Fuzarca dos Descalços partem para a ação, a nossa Antígona não morria e levava sua obstinação às últimas consequências”, declara Aysha.  O final da nova montagem, segundo a diretora, é menos radical e oferece uma trilha reflexiva, a de imaginar uma sociedade em que todos possam caminhar juntos. Éder dos Anjos endossa as palavras de Aysha e fala que, neste momento, o ator tem todo o direito de manifestar os próprios sonhos. “Se a gente não produzir utopia na obra de arte nada mais nos resta”, conclui. 

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