Obra de Dostoievski dispara overdose social com viciados em literatura

Depois de ‘O Idiota’, Mundana e Cia Livre retornam ao universo do autor russo com relatos dos desabrigados da Maloca Jaceguai

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Por Leandro Nunes
Atualização:

No fim do mês de julho, uma operação da Polícia Militar e da Guarda Civil, em pleno inverno, retirou cerca de 50 famílias dos baixios de um viaduto no Bixiga, ocupação conhecida como Maloca Jaceguai. As imagens, gravadas por Rashid El Bakri ao longo da ocupação até o dia da reintegração de posse, povoam a grande caixa de papelão criada no palco do Centro Cultural Banco do Brasil para a estreia de Dostoievski Trip, uma viagem empreendida pela Mundana Companhia e Cia Livre, que estreia neste sábado, 28. 

O texto do autor Vladimir Sorokin, expoente na nova dramaturgia, cria uma curiosa intertextualidade entre cenas da obra dostoievskiana e até mesmo com Stephen King (leia abaixo) que merece tempo e atenção para ser descoberta em cena. Para a diretora Cibele Forjaz, que dessa vez parece mergulhar em uma encenação no limite do contemporâneo, a peça é, uma retomada da saga O Idiota – Uma Novela Teatral (2010), em parceria com ambas as companhias – e suas sete horas de duração – e também uma nova chance de enxergar no que deu o capitalismo selvagem e suas formas de exploração. “Ele cria uma estrutura minimalista e não esconde nada, para falar justamente de uma overdose da sociedade contemporânea, no sentido de que a vida colapsa, a arte colapsa e o teatro também.”

Adictos. Sete viciados em literatura provam uma nova 'droga' russa Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

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Em cena, um grupo de sete viciados se reúne para experimentar uma nova e mais excitante “substância”. Enquanto aguardam a chegada do dealer, eles confessam que estão cansados de tomar a droga “Joyce”, ou a “Hemingway”, e que não se contentam mais com as sensações provocadas por “Poe”, em um jogo com o nome dos escritores James Joyce, Ernest Hemingway e Edgar Allan Poe. Como é de se esperar, a mala que o dealer carrega está cheia de exemplares de Dostoievski, que são distribuídos aos sete viciados. “O autor cria uma brincadeira ao transformar a criação intelectual desses escritores em algo material”, explica a diretora.

A viagem provocada pela nova droga recria episódios das obras do autor russo, que foi sagaz em analisar a burguesia de sua época e sua busca ilimitada por dinheiro e poder. Em uma das cenas, Nastácia, de O Idiota, faz um leilão de si mesma, e acaba se vendendo ao herdeiro rico Rogójin, que entrega nas mãos da moça grande quantia em dinheiro. “Há uma intenção explícita. Ela se considera uma mercadoria e não tem medo de declarar isso”, conta Cibele. Para ela, a montagem delata uma terra arrasada pela exploração e mercantilização de tudo. No ápice, Nastácia vai desafiar o príncipe Liev e todos os presentes com um ato inesperado. “A peça não é direta ao criticar o capitalismo, dando os nomes, mas Nastácia queima dinheiro e fazemos isso dentro de uma instituição ligada a um banco. Não é pouca coisa.” 

O que virá a seguir também é bastante diferente da cena anterior. O elenco desenrola relatos de quem está bem longe do poder e de suas influências. “Aqui o autor vira a chave mais uma vez e recorre à memória e à saudade do tempos passados.” Entre um homem que prepara uma refeição, e o outro que recorda sua obsessão por borboletas, a vida frugal tenta inspirar algum alento. “Mesmo assim, nada aponta para qualquer esperança, apenas para uma invisibilização dessas pessoas, já que elas não estão integradas ao sistema”, afirma Cibele, citando o caso da Maloca Jaceguai. “Esses relatos fazem sentido porque são de pessoas à margem de um sistema que quer desaparecer com elas.”

Autor evoca estrutura do grande Stephen King

No era do retorno dos clássicos e de seus blockbusters, o palhaço Pennywise, de It – A Coisa (1986), não teve descanso no cinema e tudo pode ser motivo para desfilar o clown com seus balões capazes de amedrontar adultos por muitas temporadas. Só que, mais importante que o figurão, a grandeza dessa obra de Stephen King está em produzir um terror interno pautado pelos medos profundos que conectam sete amigos. Essa é a mesma quantidade de personagens em Dostoievski Trip, que estreia hoje, 28, no Centro Cultural Banco do Brasil e uma cena particular sugere relações.

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Para além do número cabalístico, a cidade de Derry foi palco para uma história escrita sem pensar nos limites do tempo e cheia de detalhes sobre a personalidade e a rotina das crianças que viram o palhaço monstruoso que se alimenta de medo, ao qual elas juraram combater até o fim.

Na peça, o autor russo Vladimir Sorokin se utiliza da estrutura narrativa em uma cena com grandes solilóquios. Nela, Aury Porto, Edgar Castro, Luah Guimarãez, Lúcia Romano, Marcos Damigo, Sergio Siviero e Vanderlei Bernardino tecem memórias no ambiente sonoro de Guilherme Calzavara. Tal qual as lembranças, o caminho percorrido também é sinuoso e sem destino aparente. Há uma esfera psicanalítica que se impõe, muito embora não tenha sido abordada diretamente pela direção. Assim, com o tempo, os relatos vão dando as mãos, interligando pessoas tanto pelo aspecto inútil de hábitos quanto pelo desejo de sobreviver, o que se confirma com as projeções e os depoimentos de moradores da Maloca Jaceguai, expulsos em uma operação de reintegração de posse. 

Se a diretora acha que o autor conseguiu unir uma inspiração aparentemente tão distante de Dostoievski, por outro lado Sorokin comenta a produção literária e – por que não? – artística, também sujeita ao mero lugar de produto, que pode ser usado e descartado em seguida. King e Dostoievski podem não ter tantas relações imediatas, mas o medo que devasta a História é uma ferramenta que serve bem na mão dos poderosos.

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