Análise: 'My Fair Lady' enfeitiça ao transformar ácido em perfume

Peça de Shaw é uma obra de arte de primeira linha,

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Por Claudio Botelho
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Jay Lerner (letrista e libretista) e Frederic Loewe (compositor), baseados na peça genial de Bernard Shaw, Pigmaleão. E, quando você vai ao texto original de Shaw, percebe talvez onde está a origem daquela famosa frase de efeito: “na Broadway, tudo pode virar musical”. E pode mesmo.  A peça de Shaw é uma obra de arte de primeira linha, fechada em sua grandeza e, à primeira vista, misturar canções a seu texto ácido, cinicamente verborrágico, deliciosamente misógino e moralista, seria um acinte e, mais que tudo, desnecessário. Mas a maneira como Lerner & Loewe cirurgicamente entram no texto e substituem cenas inteiras por canções que avançam a ação é exemplar. O personagem central, Professor Higgins, por exemplo, tem vários números solo no musical, e todos são longos. Tanta música na boca de um professor durão e antissocial iria soar como um remendo na obra se Higgins de fato “cantasse”.  Na verdade, durante os ensaios da montagem original, o grande ator inglês Rex Harrison irritou-se um pouco com as orquestrações e o andamento musical, e começou a recitar maior parte das letras, atrasando os compassos da música, cantando como se falasse. Isso tornou-se célebre, era a primeira vez que se via algo assim na Broadway, e acabou, meio por tabela, virando uma marca registrada da dupla de compositores, tanto que eles adotariam aquele estilo em personagens-chave de seus musicais seguintes, Camelot e Gigi. E todas as montagens importantes de My Fair Lady usam o “recitativo” como norma para o papel de Higgins. Mesmo com a orquestra tocando as melodias por baixo, grandes atores como Jonathan Price, Richard Chamberlain, John Lithgow e Jeremy Irons seguiram a cartilha original e sempre alternaram canto e fala nas canções. O Brasil teve um Higgins e uma Eliza (a “Lady” do título) espetaculares na década de 1960: Paulo Autran e Bibi Ferreira arrebataram multidões numa montagem que era réplica da original americana. Uma curiosidade a mais é que, nesse espetáculo, Marília Pêra fazia uma das coristas, estreando em teatro. Um LP foi lançado com o elenco brasileiro, o que tornou as músicas um enorme sucesso no País todo. Mas, embora algumas das letras tenham virado quase clássicos na nossa língua (“O rei de Roma ruma a Madri...”), por outro lado, as exigências de uma versão quase literal das músicas fez com que algumas letras resultassem em frases completamente sem sentido, como “I’m Getting Married in The Morning”, que em português tornou-se a quase anedótica “Vou Me Casar em Matrimônio” - o que seria alguém que se casa “em matrimônio” ? O que importa é que My Fair Lady é amado no mundo todo, e amado pelos brasileiros desde sempre. A montagem de Jorge Takla em 2007 foi um arrasa-quarteirão em São Paulo, com Daniel Boaventura e Amanda Acosta brilhando como Higgins e Eliza, e com o saudoso Francarlos Reis levando a plateia ao delírio no papel do falastrão Mr. Doolittle, pai de Eliza. Não há quem não se encante com a humanidade dos personagens, a qualidade do texto e músicas originais, e até mesmo os mais duros na queda se dobram ao encanto dessa história que, no fundo, é uma Gata Borralheira para adultos. Assim como a doce Eliza entorta o coração do insensível Higgins, nós, amantes de musicais ou não, somos enfeitiçados e levados a acreditar que é possível, com amor, transformar ácido em perfume - e vice-versa.

* CLAUDIO BOTELHO É ATOR E DIRETOR