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'Motel Rashômon' faz do palco um jogo cuja regra é conquistar o poder

Espetáculo inspirado no conto 'Dentro do Bosque' do japonês Ryûnosuke Akutagawa retoma eventos da política nacional

Por Leandro Nunes
Atualização:

“A vida é curta. É um crime desperdiçar.” A frase, dita por um dos personagens da minissérie Felizes Para Sempre?, exibida pela TV Globo, não deve nada para o conto Dentro do Bosque, do autor japonês Ryûnosuke Akutagawa. O texto inspirou o espetáculo Motel Rashômon, da Cia Santa Cacilda, que estreia nesse domingo, 10, e mostra que o cenário político brasileiro está bem consciente do significado dessa frase. “Os escândalos em Brasília não param de acontecer”, diz a atriz e idealizadora do projeto Raquel Anastácia.  Tantas investigações motivaram a versão de Marcos Gomes sobre o assassinato de um político.

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Os suspeitos estão sendo investigados e cada qual tenta despistar o juiz e incriminar o outro. A figura do meritíssimo não existe no palco, mas está na plateia. O diretor Roberto Audio conta que os quatro atores se remetem diretamente ao público, olho no olho, enquanto concedem seus depoimentos. “Percebemos que isso poderia instaurar um clima de julgamento e colocaria o público em um papel importante na trama.”

No palco, os atores vão precisar se entregar de corpo e alma para saírem ilesos. Ainda que, para isso, eles precisem fingir. “Como no conto, o texto indica que são atores interpretando um julgamento,” aponta o ator Alessandro Hernandez. “Eles entram e saem de seus personagens o tempo todo, além de interpretarem outros”, como é o caso do deputado morto, que tem seus últimos instantes de vida recriados pelo ator junto com Ernandes Araújo. “É um jogo em que eles precisam se safar. Para isso, invocamos o discurso de um e outro ao nosso favor, não importa o custo,” diz Araújo. 

Tribunal. Suspeitos do assassinato de um político precisam convencer o júri de sua inocência, ou incriminar o adversário Foto: ALEX SIlva/Estadão

A dupla de atrizes que completa o time embaralha as investigações trazendo evidências de crimes passionais e muito dinheiro envolvido. “Estamos à serviço da reconstituição”, diz Tertulina Lima. “Elas se envolvem em relacionamentos perigosos para encobrirem suas ações ilícitas, se é que foram praticadas”, provoca. “Mais que tentar provar a própria inocência, elas querem continuar na corrida pelo poder,” ressalta Anastácia.

Esse é o objetivo, afirma Audio. O diretor conta que não queria se ater na explicação dos crimes. “Procuramos criar o caos a partir do jogo entre os atores”, conta. “Todas as declarações servem para ilustrar a falta de caráter, o cinismo de muitos políticos criminosos.” Para preencher esses episódios, notícias de vazamentos de áudios e contas na Suíça servem de degrau para cada suspeito alçar novos patamares ou para derrubar o adversário escada abaixo. Vale até divulgar os nudes (imagens de pessoas nuas, sem consentimento). “Os bastidores da política foram escancarados para nós e mostraram muitas maneiras de manipular informações e criar um discurso crível”, acrescenta Audio. 

E a construção dessa ‘verdade’ fica nas mãos dos atores, ressalta o diretor. No palco, cada suspeito tem o direito de narrar a sua versão. Isso não significa que eles vão respeitar qualquer ordem. “Além da minha própria declaração, eu recrio as falas do homem assassinado”, diz Hernandez. “Também podemos obrigar alguém a dar uma declaração que nos favoreça, ou prejudique o outro.” Tertulina lembra que não é preciso jogar sozinho o tempo todo. “Os suspeitos vão se aliar conforme o andamento das investigações. Em certo momento, dois deles se juntam para a forjar provas contra os outros dois.” 

Outra metáfora que guiou a encenação foi a de um ringue de luta, representado no cenário de Telumi Hellen. Os atores ocupam as extremidades do palco em forma de retângulo e escolhem qual o melhor momento para entrar e sair da batalha. E eles vão se agredir! “Isso cria diversas leituras, a partir das interações dos atores entre si, quando eles se dirigem para a plateia e também ao retomar cenas do passado em flash-backs”, diz Audio. 

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Diante desse embate incansável que inclui sequestros, subornos, tentativas de suicídio e sedução, Audio ressalta que nada será capaz de arranhar a imagem desses personagens. “Eles são pessoas públicas e tentam manter a compostura, mesmo que tenham acabado de representar a sua versão do assassinato, colocando o outro suspeito na execução da vítima.”

Para o diretor, a história narrada de maneira fragmentada revela a banalidade da política. Em diversos momentos, uma campainha é disparada de maneira desordenada para anuncia os próximos rounds. “O palco ecoa o espetáculo que se tornou a política. As denúncias que surgem e deixam a sociedade chocada logo serão esquecidas para que outras apareçam no lugar.”

“Faz parte da nossa má tradição política”, observa dramaturgo

Texto de Marcos Gomes tem episódios inspirados em crimes históricos do Brasil e nas formas de manipulação atuais

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As visitas em tribunais para acompanhar júris populares serviram para que o dramaturgo Marcos Gomes tivesse em mente sob quais temperaturas ocorrem os julgamentos de crimes contra a vida. Segundo ele, a estrutura de Dentro de Bosque, escrito em 1922 por Ryûnosuke Akutagawa – pai do conto japonês –, mantém o mesmo clima tenso. 

No relato, sete personagens apresentam suas versões sobre a morte de um samurai, cujo cadáver foi encontrado em um bosque. O texto do japonês parte para o absurdo e chega às últimas consequências ao incluir o relato do próprio morto, por meio de um médium que consulta o mundo dos mortos. Mais tarde, em 1950, o autor utilizou o enredo como base para o filme Rashômon, de Akira Kurosawa.

Na versão de Gomes, além de reduzir o número de personagens, o dramaturgo buscou aproximar a história com notícias da política brasileira, bem como de crimes que tiveram grande repercussão na sociedade, como a morte do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, em 2002, e o caso da menina Isabella Nardoni, de 2008. “Foram acontecimentos que tiveram grande apelo midiático. Eu moro perto da Escola Base e lembro como foi.”

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Em Motel Rashômon, o dramaturgo diz que a Cia Santa Cacilda promoveu diversas leituras para perceber como o texto funcionava no palco. “Uma versão trazia longos depoimentos isolados e isso perdia força. Com o tempo, reduzi algumas falas e cruzei umas com as outras.” Para ele, essa polifonia fica presente na direção de Roberto Audio. “Temos acesso ao discurso dos réus e eles tratam o público como o juiz”, ressalta.

Gomes acrescenta que episódios da política mais recente também rechearam o texto, como as citações de contas bancárias de políticos na Suíça e a pornografia de vingança, que divulga imagens íntimas de pessoas públicas sem consentimento. Na peça, não há intenção de narrar a solução de um crime e o dramaturgo afirma que essa característica também dá forma ao texto. “Não há um final dramático, mas o retrato da morosidade das investigações”, conta. “Todas as pistas, obtidas na frente das câmeras ou não, só servem para dificultar. Isso faz parte da nossa tradição política. De uma má tradição.”

MOTEL RASHÔMON. SP Escola de Teatro. Praça Roosevelt, 210. Tel.: 3775-8600. Sáb., 21 h. Dom e 2ª, 20 h. R$ 20. Estreia 10/7. Até 29/8

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