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Monólogo escrito por Cristian Ceresoli é jornada particular de uma mulher em fúria

Em magnífica atuação, de alta carga emocional, Christiane Tricerri faz de seu trabalho um ato de revolta e liberdade

Por Jefferson Del Rios
Atualização:

Instalada no topo de um pedestal, ora ajoelhada, ora sentada, Christiane Tricerri observa amigavelmente o público que chega. Identifica conhecidos, sugere que fiquem à vontade. Mexe os pés em um movimento de aquecimento. Sorri. O detalhe diferente é ela estar completamente nua. Nudez frontal e espontânea de uma mulher bonita. Nenhuma intenção de incomodar. O que virá em seguida, será, em crescendo dramático e pausas eloquentes, o monólogo A Merda, por uma atriz talentosa. Um manifesto político-existencial.

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O texto de Cristian Ceresoli honra a tradição italiana dos desaforos antirreligiosos e antipoderes do Estado, com referências erótico-fisiológicas cruas. Insolência anárquica agressiva descendente do poeta licencioso Arentino (1537-1557), do grotesco de Pasolini e do panfletarismo do teatro de Dario Fo, autor de A Morte Acidental de Um Anarquista. Arte mal-humorada ou iconoclasta (acessível na internet a quem sabe italiano numa canção de Marco Masini de título óbvio). A crítica internacional rendeu-se à virulência de La Merda e ao talento da atriz original, Silvia Gallerano.

Texto e encenação foram descritos como palavras que se fazem carne viva vomitada em um fluxo de consciência da jovem com defeito físico, que perdeu o pai tragicamente, mas que acreditou no mundo da comunicação de massa e da fama instantânea. É o mesmo que agora Christiane Tricerri faz, com menos exageros faciais e o ar de desequilíbrio psicológico de Gallerano. 

Christiane Tricerre na peça A Merda, de Cristian Ceresoli Foto: GAL OPPIDO/DIVULGAÇÃO

Em todo caso, o drama humano precede a ideologia. A moça imaginada pelo dramaturgo é feia. O seu desamparo e sofrimento não estão diretamente só ligados ao capitalismo e à alienação difundida pelos aglomerados televisivos. Chegamos ao velho problema da intenção e sua tradução. O original inspirou-se em fatos locais. Cristian Ceresoli não acrescenta mais ao que sabemos porque, contradição, a televisão e a publicidade brasileiras têm o mesmo nível (conteúdo e técnica e insensibilidade), se não forem superiores, das europeias. 

A alta temperatura verbal de Ceresoli funciona melhor como linguagem e menos como política (descontando-se as perdas de sonoridade e do possível sentido exato na tradução). Dizer que a peça surgiu no ambiente eleitoral pré ou pós-Berlusconi é difícil de nos espantar. Antes dele, a Itália se livrou de Bettino Craxi, que se dizia socialista e, em 1992, caiu na malha da Operação Mãos Limpas. Morreu foragido, na Tunísia. 

Citar Pasolini, que afirmou ser a sociedade do consumo um totalitarismo mais duro que o fascismo, idem (duas mulheres, Liliana Cavani e Lina Wertmüller são melhores como criadoras cinematográficas). O que prevalece é uma pessoa no rompante de loba romana contra toda uma situação familiar e social. Os interstícios históricos aparecem na referência à camisa vermelha do pai, aos “homens pequenos” e ao hino nacional, mas, de qualquer forma, estamos, sobretudo, diante de una giornata particolare desta mulher que, em fúria, deseja mastigar e defecar os testículos dos que espezinham os mais fracos. 

Um linguajar pesadíssimo que não incomoda porque é o grito dos oprimidos, de todas as minorias à margem da dignidade. Christiane Tricerri concilia doçura pessoal, feminilidade e fúria ao proclamar sua adesão aos anônimos injustiçados, a todas as mulheres que não querem apenas obedecer à ordem machista, à ditadura da moda e às ofertas de ascensão através de concessões aviltantes. Na sua ira discursiva, com verdades e delírio, o que surge é o ser humano entrevisto e retratado na alta literatura. 

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A versão feminina do Diário de um Louco, de Nicolas Gogol (no Brasil em histórica interpretação de Rubens Corrêa), a progressão de uma pessoa aos limites da insanidade por ter acreditado em alguma ordem e justiça quando é a negação delas que prevalece. Sua interpretação, com o apoio fundamental de Lianna Matheus (assistente de direção) é o testemunho de carência, solidão e ataque, talvez suicida, de quem já tudo perdeu. Um grande, brilhante, momento de Christiane Tricerri.

A MERDA Sesc Pinheiros. Auditório.  Rua Paes Leme, 195, 3095-9400.  5ª a sáb., às 20h30.  R$ 7,50/ R$ 25. Até 15/8

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