Matheus Nachtergaele concebe um monólogo com poesias de sua mãe

Em ‘Processo de Conscerto do Desejo’, ator faz as pazes com a dor da perda no reencontro com a mãe morta

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colunista convidado
Por Leandro Nunes
Atualização:

Diante de um pergunta, Matheus Nachtergaele diz que é relativo afirmar que não conheceu sua mãe. “Posso dizer que, enquanto éramos uma coisa só, eu estive com ela.” Maria Cecília cometeu suicídio em 1968, quando o pequeno Matheus tinha apenas três meses. “Mas, se é verdade que um bebê ainda não desenvolve alteridade nesse período, ela não estava mais lá.” A delicadeza com que o ator fala abertamente de sua progenitora teve seus primeiros passos nos poemas deixados por ela. Hoje, eles fazem parte de um bê-á-bá existencial de Nachtergaele, apresentado em Processo de Conscerto do Desejo, a partir desta quinta-feira, 7, no Sesc Pompeia. Entoados como canções, os textos de “mamãe” são colocados em concerto para consertar algo, em um duplo jogo com o título do trabalho. 

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De posse dos poemas e de lembranças contadas pela família, Nachtergaele conta que passou a vida construindo memórias para si. “Eu passei a ter uma fala da mamãe e a subjetividade de seus escritos.” Os versos de Maria Cecília foram guardados quase secretamente. “Pensei que poderia chamar uma atriz para dirigi-la, mas percebi que precisava de um momento que eu mesmo pudesse dizê-los.” Foi uma forma de experimentar a dor da perda, mostrando o que sua mãe tinha de melhor com o que ele sabe fazer de melhor. “Não tive oportunidade de fazer luto da mamãe. Eu chorei, mas foi porque perdi meu peito, meu colo, meu cheiro de mãe. É claro que o choro se espraiou pela vida toda e eu precisava resolver como artista.”

No palco, o ator busca reunir elementos os quais acredita que constituam um bom teatro: simplicidade, a força da palavra e música ao vivo – no violão, Luã Belik, e, no violino, Henrique Rohrmann. As cordas vêm para homenagear um passado ainda mais anterior, seus pais se conheceram em uma roda de viola. O pai de Nachtergaele já integrou a Traditional Jazz Band. 

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A montagem recém-chegada do Festival de Curitiba estreou no ano passado em Ouro Preto, passou por Pernambuco e pelo Rio de Janeiro. Se, no início, o desafio do ator era contemplar um material tão sensível e pessoal, vez por outra, ele confessa que é capturado em sua emoção. “Não dá para evitar, mas, às vezes, a poesia também me morde.”

Visceral. Uma vida construindo memórias da mãe que não conheceu Foto: Leo Aversa|Divulgação

“Quantos vão desmaiar hoje?” Essa era a inusitada aposta que a equipe do Teatro da Vertigem fazia antes de mais uma noite de O Livro de Jó. Se, em 2014, o Hospital Umberto Primo ostentou uma exposição de artistas brasileiros, em 1995, quando a peça estreou no espaço, o prédio iniciava um ciclo de quase duas décadas de abandono. Desativado em 1993, o complexo foi sondado pela grupo de Antonio Araújo para receber a encenação, que retratava a miséria do homem na figura da personagem bíblica, vivida na carne por Matheus Nachtergaele. De cabeça para baixo, o ator ficava dependurado em um pau de arara e do seu corpo, uma mistura de óleo e tinta vermelha pingava constantemente. Essa era a receita dos desmaios. A cada sessão, pelo horror, duas ou três pessoas precisavam deixar o espetáculo, espontaneamente ou carregadas. A recepção da montagem projetou o Vertigem nas alturas – que havia estreado como grupo com Paraíso Perdido – e marcou de maneira permanente a carreira de Nachtergaele. 

Em Processo de Conscerto do Desejo, a intenção não será provocar desmaios, mas a vontade de se sujar com misturas contínuas. “Eu me pinto com tinta amarela. Para iluminar, lançar um pouco de luz em tudo isso.” Assim foi na lama de Woyzeck, montado em 1990, pela recém-formada Cibele Forjaz e com dramaturgia de Araújo, nos tempos da Escola de Arte Dramática. “Tem a ver com as nossas origens, com o que somos”, conta o ator. 

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A projeção de O Livro de Jó o levou a contracenar com Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e Celso Frateschi em Da Gaivota, em 1998, mesmo ano do sucesso cinematográfico de Central do Brasil. Dois anos depois, Nachtergaele ainda dividiu o palco com Paulo José, em A Controvérsia. “Aos poucos, fui imprimindo um estilo no meu trabalho. Tanto no teatro, como em outros projetos, sempre fui chamado para personagens com os quais eu me identificava, de alguma forma.” Em 2012, sua última passagem pelos palcos significou também um retorno. A lama de George Büchner estava lá, agora em Woyzeck, O Brasileiro, personagem convertido de soldado a operário de uma olaria na dramaturgia de Fernando Bonassi. 

Canção. Ator mescla poemas com músicas que a mãe gostava Foto: Leo Aversa|Divulgação

Mas nada disso se assemelha “ao melhor texto que ele já leu”, ele ri, em referência à poesia de sua mãe. “Apesar de toda a afetividade que tenho pelos escritos, eles também retratam uma jovem moderna para aquela época, com pensamentos protofeministas e visão política do que é ser mulher”, conta. “E uma boa dose de tristeza, como todo grande poeta”, acrescenta. “Tem poemas de amor, de desilusão amorosa, alguns que parecem haicais.”

Para acompanhar os versos, o ator também inclui canções de músicos e compositores que sua mãe apreciava, além de algumas que eram executadas pelo seu pai, como Paulinho da Viola, Zé Kéti e Bach. “No início da Traditional Jazz Band, em 1964, papai tocava banjo. Ele foi um dos fundadores do grupo, mas, com a morte de mamãe, foi se desiludindo até sair da formação.” 

A paixão por música pegou Nachtergaele por outro lado. Ele conta que até se esforçou nas aulas de violão, sem sucesso. “Lá em casa, eu era o cantor oficial de papai”, defende. A montagem está há quase um ano na estrada e seu pai ainda não assistiu. A surpresa é que ele confirmou presença na temporada em São Paulo. Nachtergaele conta que espera o momento desde a concepção do projeto. “Acredito que ele vai se emocionar bastante. Muitos textos parecem ter sido destinados a ele. Talvez para o amor que ela estivesse vivendo com ele. Segundo me diziam, eles se amavam muito.”

Durante muitos anos, seu pai sentava com a viola e anunciava ao filho: “Sua mãe gostava dessa música”. “Era como um segredo, só nosso”, Nachtergaele diz. Não será mais.

PROCESSO DE CONSCERTO DO DESEJO. Sesc Pompeia. R. Clélia, 93. 5ª, 6ª, sáb., 21h; dom., 19h30. R$ 7,5 / R$ 25. Até 1º/5. Estreia 7/4.  

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