Maria Alice Vergueiro encena seu velório na peça ‘Why The Horse?’

Montagem estreia em São Paulo; do Teatro Oficina ao 'Tapa na Pantera', atriz se tornou a dama dos outsiders

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Por Antonio Gonçalves Filho
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A atriz Maria Alice Vergueiro, em 53 anos de carreira, nunca interpretou Nelson Rodrigues. Para compensar, aos 80 anos, ela encena um drama muito parecido com o de Zulmira, a suburbana carioca da peça A Falecida, obcecada pela ideia de um enterro de luxo como contrapartida de sua vida de sacrifícios. Em Why The Horse? (Por que O Cavalo?), que estreia nesta sexta, 10, no Sesc Santana, a premiada atriz e diretora também quer ter a última palavra sobre sua morte. É ela a diretora da encenação de seu velório num palco, lugar onde pisou pela primeira vez em 1962, pelas mãos de Augusto Boal (em A Mandrágora).

Sua história se confunde com a própria história do moderno teatro brasileiro - marginal ou não. Ela integrou o Teatro Oficina, participou de suas montagens mais radicais (O Rei da Vela), fundou o irreverente grupo Ornitorrinco (com Cacá Rosset), interpretou as principais peças de Brecht (Mãe Coragem) e fez um extraordinário Beckett (Katastrophé, 1986), elogiado por críticos do porte de Alfredo Mesquita (1907-1986), que classificou sua atuação na peça de “espantosa”. Mais recentemente, em 2006, Maria Alice deu um nó na cabeça dos 6 milhões de espectadores que a viram num curta exibido no YouTube (Tapa na Pantera) como uma senhora que fuma maconha há 30 anos e nunca ficou viciada.

Ensaio da peca Why the Horse com Alice Vergueiro no SESC Santana. Av. Luiz Dumont Vilares, Zona Norte Foto: EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO

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Esses novos espectadores, é provável, jamais a viram num palco, imaginando que Maria Alice e sua persona sejam a mesma maconheira. A pentaneta do senador Vergueiro, homem respeitável dos tempos do Império, nem se esforça para desfazer a dúvida. De que serviria explicar, afinal? Dependente de álcool por 30 anos, conviveu no Oficina com Julian Beck e Judith Malina, os fundadores do Living Theatre, que, nos anos 1970, em plena ditadura, foram presos no Brasil, acusados por porte de maconha. Em 1984, dirigiu uma performance em que mergulhava numa banheira ao lado da atriz Magali Biff (A Pororoca, que estreou no extinto cabaré Madame Satã e foi mostrada em Nova York). Na mesma década, ousou urinar no palco do Teatro Anchieta, ao representar Medeia, dando um insólito toque naturalista à clássica tragédia de Eurípides.

Em Why The Horse? a escatologia é de outra ordem. Tem a ver com a etimologia grega da palavra, ou seja, com o destino último do homem. A pergunta é quase a mesma feita no título do romance de Horace McCoy, Eles Matam Cavalos, Não Matam? Uma questão existencial. McCoy equipara o destino de sua heroína, participante de uma maratona de dança na época da Depressão, à morte de um cavalo, que quebra uma perna e é sacrificado. O quadrúpede da peça de Maria tem uma origem mais anedótica: a pergunta “por que o cavalo?” foi feita pela mãe da atriz, aos 98 anos, quando a filha levou para o seu elegante apartamento de Higienópolis um pangaré cenográfico.

O cavalo da peça Why The Horse? é um burrico, que lembra o Balthazar do filme A Grande Testemunha (Au Hasard Balthazar, 1966), animal cujo sofrimento é comparado pelo realizador Bresson à paixão de Jesus Cristo. Tem tudo a ver com Maria - a atriz. Depois de um câncer na garganta, ela foi diagnosticada há 15 anos com o mal de Parkinson e, presa a uma cadeira de rodas, ainda foi vítima de uma cirurgia malsucedida para a colocação de uma prótese no joelho. Não é sem razão que ela ensaia hoje seu velório no palco, onde quer morrer. 

“É bonito o vestido, não é?”, pergunta Maria Alice aos atores que a ajudam nos preparativos da viagem final, entre eles Luciano Chirolli, a quem dirigiu pela primeira vez há 23 anos, numa delicada montagem de O Amor de Dom Perlimplin com Belissa em Seu Jardim, de García Lorca. Nenhum dos quatro responde. Nem Luciano nem Carolina Splendore, que monta o burrico com os seios à mostra, nem Alexandre Magno ou Robson Catalunha, que disputam um naco de carne crua, extraído do joelho de Maria Alice como se fosse sua herança.

A rigor, não se trata de uma peça, mas de um ensaio de morte à maneira do teatro-pânico de Arrabal e Jodorowski, dois autores contemporâneos também octogenários, sintonizados com o legado surrealista de um teatro em que a fronteira entre vida real e encenação é tênue, incorporando o terror e a euforia da condição existencial. Maria Alice tem hoje enorme dificuldade para falar, ela cujo vozeirão era perfeito em Katastrophé (ouvido numa gravação na peça). Ironia: a tragicômica visão de Beckett do dilema do artista aprisionado o conduz ao quarto ato (a catástrofe, na tragédia grega), quando, finalmente, se submete ao destino. Mesmo caso de Maria Alice: “Não tenho medo da morte, tenho medo de morrer”, diz, repetindo o refrão de Gilberto Gil.

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Ela tenta morrer. Tenta, tenta. Nada. Deita para morrer, mas a algazarra do ensaio não deixa. Os atores correm pelo palco à beira do desespero - como Luciano, um filho inconsolável no leito de morte da mãe. “Pronto, é só escolher o dia da morte e a gente não morre mais!”, ironiza a velha dama indigna e imortal, enquanto o sonoplasta aumenta o som. E a trilha tem como tema principal um fragmento do Réquiem de Fauré. É uma despedida em alto estilo. Além de Fauré, Bach e Shostakovich. Não há muito texto, pois se trata de um velório ao estilo do teatro da crueldade de Artaud. Nele importa o gesto, a respiração, o corpo do ator. A palavra vira acessório.

WHY THE HORSE?

Sesc Santana. Av. Luiz Dumont Villares, 479, telefone 2971-8700. 6ª e sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 9 a R$ 30. Até 10/5.

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