‘Ludwig e Suas Irmãs’ mostra a  inteligência no limite da loucura

Espetáculo inspirado em Thomas Bernhard traz o fracasso ou a filosofia como delírio cômico; em cartaz no CCSP

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Por Jefferson Del Rios
Atualização:

Embora ancorado em Ludwig Wittgenstein, um dos nomes basilares da filosofia, e em Thomas Bernhard, escritor agressivo, ambos austríacos, o espetáculo Ludwig e Suas Irmãs é sobretudo o teatro de Eric Lenate, que tem menos de dez anos de carreira, já consistente, como ator e diretor. É dele, da sua imaginação e risco, o acerto e o desacerto da encenação. Não é obrigatório ao espectador o conhecimento aprofundado do pensamento do autor de Tractatus Logico-Philosophicus e da literatura de Bernhard que começou a ser conhecido no Brasil com o soturno romance Náufrago, de 1983, o ano do nascimento de Lenate, mas publicado em português só em 2006 quando ele se revelava no Centro de Pesquisa Teatral (CPT, dirigido por Antunes Filho). 

Mera curiosidade inspirada por um texto repleto de subjetividades excêntricas, delirantes e ou francamente loucas. Lenate e os interpretes Cléo de Paris, Jorge Emil e Lavínia Pannunzio entraram com tudo no clima. Em cena, o que se vê são ruínas de afetos, fracassos na profissão, incomunicabilidade entre irmãos, ódio aos pais, tudo com aquela superioridade mau humorada de classe de gente rica que faz o que bem entende. 

Confronto. Peça dirigida por Eric Lenate é repleta de uma subjetividade excêntrica, delirante ou mesmo francamente louca Foto: Leekyung Kim/DIVULGAÇÃO

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Exageros no Império Austro-húngaro, que existiu ao longo do século 19 até a 1ª Guerra Mundial no que hoje são mais de dez países, da Polônia às fronteiras da Rússia. Monarquia absolutista, centrada na Viena das valsas e do Danúbio que nunca foi azul. Este período, e o seu declínio, não estão na obra de Bernhard, mas no extraordinário romance A Marcha de Radetsky, de Joseph Roth, felizmente reeditado. São escritores diferentes no tempo e nos objetivos. Roth (1849-1939) é o narrador perplexo e nostálgico de uma época crepuscular que acaba de vez na 2ª Guerra, o que ele registra no segundo livro, A Cripta os Capuchinhos, quando, desterrado e triste, vivia em Paris onde está sepultado. 

Bernhard (1931-1989) se propôs a vergastar a Áustria atual, territorialmente menor, mas rica e com contradições que expõe em peças como Praça dos Heróis ou em cada página de Extinção, romance que se explica no título. Um combate exasperado a tudo o que é austríaco-católico-reacionário e de fundo antissemita. Fluxos de pensamento numa linguagem considerada inovadora na nova literatura de língua alemã. Seu ímpeto destruidor comporta ao mesmo tempo um tipo de mau humor tão feroz que chega ao cômico. 

Uma mostra dele está justamente neste Ludwig de Lenate. Ironias e insultos do filósofo brilhante e ao mesmo tempo mentalmente perturbado, um autêntico “fim de raça”, original e arrogante, inconstante e frágil que criou um sistema filosófico, que, simplificando e em sua declaração, seria “não há uma só imagem no mundo, mas muitos jogos dispersos de palavras”. Esse Wittgenstein que, como Bernhard, evitou ao máximo a Áustria, viveu parte da sua vida na Inglaterra onde conquistou e incomodou a Universidade de Cambridge e morreu aos 62 anos. 

Caso se queira efetivamente entender suas ideias e a vida que levou, os caminhos são a inevitável leitura do Tractatus e, recomenda-se, o filme Wittgenstein, de Derek Jarman, que vai da sexualidade aos atos públicos do Ludwig impaciente com amigos, parentes, alunos e capaz de gestos políticos incoerentes. Enfim, inteligência rara e um ser humano que não escondia que “cada hora, cada dia me mantenho em pé com grande dificuldade”.

A peça é o apogeu desta contradição existencial ao colocar Wittgenstein e suas irmãs em confronto. O diretor optou pela aceleração do universo claustrofóbico e neurótico do filósofo. E o público, na sessão assistida, aderiu ao absurdo patético mesmo sem, talvez, captar tudo. Ludwig só tem um momento difícil, quando duas atrizes talentosas, Lavínia Pannunzio e Cléo De Páris, fazem algo muito incômodo em teatro que é, de saída, falarem 30 minutos em voz aguda e esganiçada. Mesmo com a cilada do tom histérico, conseguem boas cenas. E, com a chegada de Wittgenstein, na divertida e enigmática interpretação de Jorge Emil, surge o lado intrigante e o subtexto crítico do espetáculo.

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LUDWIG E SUAS IRMÃS

CCSP. Sala Jardel Filho. Rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, 3397-4002. 6ª e sáb., às 21 h; dom., às 20 h. R$ 20. Até 17/5. 

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