Grupo Tapa reafirma suas qualidades em ‘O Jardim das Cerejeiras’

Em seu aniversário de 40 anos, grupo se apoia em boas interpretações para construir versão fiel da peça de Anton Tchekhov

PUBLICIDADE

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Mesmo diante da falência iminente, a protagonista de O Jardim das Cerejeiras não pensa em abrir mão de suas convicções. Para salvar sua propriedade, prestes a ser leiloada, Liuba poderia construir chalés para turistas e alugá-los no verão – eis a sugestão que recebe de um homem de negócios. Mas a ideia lhe parece de tal maneira despropositada e vulgar que ela sequer a leva em consideração. Prefere perder a centenária casa da família a ceder em sua visão de mundo.

'O Jardim das Cerejeiras' estreou em 1904 Foto: Ronaldo Gutierrez

PUBLICIDADE

A trajetória do grupo Tapa, que celebra 40 anos de existência, não deixa de guardar suas semelhanças com o enredo dessa peça de Anton Tchekhov. Tal qual a personagem do drama russo, a companhia teatral mantém-se fiel a seus princípios mesmo quando todo o entorno lhe convida a se adaptar aos novos tempos. Acostumado à velocidade das mídias digitais, o público hoje quer textos mais curtos. Até os clássicos devem ser adaptados para agradar ao paladar contemporâneo. Nesse contexto adverso, o Tapa insiste em ser voz dissidente. Nadando contra a corrente, o grupo não deixa morrer os grandes momentos da literatura dramática dos séculos 19 e 20. E opta por trazê-los em versões fidedignas – como se tivesse um compromisso pedagógico de formar as novas plateias.

Última e mais celebrada das peças de Tchekhov, O Jardim das Cerejeiras estreou em 1904 envolta em uma polêmica. Para o autor, tratava-se uma comédia. Já para o diretor da primeira encenação, Konstantin Stanislaviski, era evidentemente um drama de coloração trágica. De certa forma, a visão de Stanislavski foi a que prevaleceu ao longo dos anos. Mas a direção de Eduardo Tolentino de Araújo dosa bem a mão e consegue equilibrar as duas visões.

No papel principal, Clara Carvalho constrói uma interpretação que é a viga mestra dessa sobreposição entre o ridículo e a melancolia. Sua atuação como Liuba faz um delicado ziguezague: surge ora desnorteada, ora segura de suas convicções. Heroína e anti-heroína ao mesmo tempo, lamenta as perdas que sofreu sem perder de vista certa lucidez. Ela já viu morrer seu filho mais novo, foi rejeitada pelo amante e agora assiste à demolição de sua antiga casa. Tem atitudes excêntricas – como a decisão de promover um baile em meio ao colapso que a assombra – mas também aponta o lado patético daqueles que acreditam demais nas próprias verdades, como é o caso do estudante idealista, Pétia (Alan Foster).

À presença dessa alquebrada senhora aristocrática, Tchekhov soma o humor, a cargo principalmente dos personagens secundários. Também atingido pela perda das terras, o irmão de Liuba, Gaév (Brian Penido Ross), só quer saber de jogos de bilhar e descreve suas ideias com movimentos de sinuca. O administrador da propriedade Epikhodov (Paulo Marcos) vive tropeçando e caindo, o criado Firs (Guilherme Sant’Anna) é surdo e a governanta Carlota (Mariana Muniz) saca truques de mágica nos contextos mais despropositados.

Existe a tristeza por um mundo que fenecia naquele momento histórico – lembramos que a Rússia estava às portas da Revolução de 1917. Mas há, sobretudo, um choque por não se saber em que direção se caminhava. O interessante é que as semelhanças com a conjuntura atual – igualmente um momento de crise de valores e de construção de novas bases sociais – ficam evidentes sem que a direção precise sublinhar os pontos de contato. Fica a encargo de quem vê ligar esses pontos ou não. E essa confiança na inteligência do espectador faz toda diferença.

Algumas questões técnicas limitam o espetáculo: Iluminação e cenografia são um tanto óbvias e acrescentam pouco ao resultado. O som também não ajuda – aparentemente em função dos equipamentos do teatro. São aspectos a ser ajustados, sem que se comprometa o essencial: uma harmoniosa interpretação do vasto elenco. Além da já mencionada atuação de Clara Carvalho, outros dois atores sobressaem: Sergio Mastropasqua como o negociante, representante dos novos tempos, e Anna Cecília Junqueira como Vária, a filha adotiva da protagonista. Sua personagem, negligenciada em muitas das montagens de O Jardim das Cerejeiras, ganha aqui uma inteireza e uma dignidade raras.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.