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Espetáculo online 'Desfazenda' se inspira na chaga do fascismo à brasileira

Peça transmitida online conta a história de quatro pessoas negras mantidas na fazenda de um padre sob trabalho duro

Por Bruno Cavalcanti
Atualização:

Em 1934, ao redigir a nova Constituição que comporia o chamado Governo Constitucional, de Getúlio Vargas, uma assembleia de deputados internalizou conceitos do fascismo italiano e polonês, entre eles a eugenia e a pureza racial, que tornaria legal o sequestro de 50 garotos órfãos levados do Rio de Janeiro para a fazenda do empresário componente da Ação Integralista Brasileira Osvaldo Rocha Miranda, no município de Campina do Monte Alegre, em São Paulo.

Cena do espetáculo 'Desfazenda - Me Enterrem Fora desse Lugar', de Lucas Moura Foto: José de Holanda

Os 50 garotos foram obrigados a realizar trabalhos forçados e, entre outras privações, tiveram seus nomes apagados, sendo chamados apenas por números. Descoberta em 1998 durante uma aula do historiador Sidney Aguilar em uma turma de ensino médio, a história das vítimas mantidas na fazenda repleta de tijolos com símbolos nazistas foi narrada pelo documentarista Belisário Franca em Menino 23 – Infâncias Perdidas no Brasil (2016). O filme foi uma das principais influências do dramaturgo paulista Lucas Moura na concepção de Desfazenda – Me Enterrem Fora Desse Lugar, espetáculo que chega ao universo online dentro do projeto Palco Virtual, do Itaú Cultural, em temporada gratuita até domingo, 27. “Havia a vontade de elaborar uma peça sobre como o sistema em que vivemos age concretamente sobre os corpos e o psicológico das pessoas pretas, como regula desde por onde podem ou não andar, até o que podem ou não imaginar. Insuflado por uma série de negras leituras como a de Frantz Fanon e trechos de livros de W.E.B Du Bois, comecei a escrever a história de pessoas pretas presas numa fazenda, espaço de onde simbolicamente poderia dar vazão, na voz dos personagens, aos dilemas que queria tratar”, conta Moura. “À época, os personagens tinham nome, eu não sabia ao certo dizer como chegaram ali e o que sentiam, mas sim, que tinham sido presos, raptados sob a desculpa de terem sido salvos. Foi quando, buscando mais inspirações, assisti ao documentário, e lembro de reconhecer a similaridade com a história que queria contar e do choque de perceber que a ficção não precisa inventar novas dores. Existem dores pungentes, feridas abertas a serem tratadas, sobre as quais ninguém fala, e quando falam, a sociedade branca, polida e racista, vira a cara”, argumenta. Estrelado pelos atores do coletivo O Bonde sob a direção de Roberta Estrela D’Alva, a obra narra a história de quatro pessoas pretas mantidas na fazenda de um padre com o argumento de terem sido salvas de uma guerra que nunca chega àquelas terras. Chamados por números, os jovens têm uma rotina de trabalho dura supervisionada por Zero, personagem enigmático e onipresente enquanto o pontífice segue recluso em uma capela. Eis a primeira incursão do coletivo paulistano pelo teatro adulto (o grupo vinha de bem-sucedido mergulho no universo infantojuvenil com a encenação de Quando Eu Morrer Vou Contar Tudo a Deus, de Maria Shu) e também a primeira parceria com Estrela D’Alva que, junto à atriz e DJ Dani Nega, traz na montagem elementos do teatro hip-hop desenvolvido pelas artistas no Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. A linguagem rendeu à dupla um Prêmio Shell pela música original do espetáculo Terror e Miséria no Terceiro Milênio, e agora desbrava as dificuldades impostas pelo digital. “O maior desafio é a sincronia, o ritmo, tanto nos ensaios quanto na criação das métricas. Ainda não existe uma plataforma onde o tempo real se manifeste sem atraso, e o delay pode fazer o ritmo desencaminhar, por isso é praticamente impossível fazer um show ao vivo e sincronizado nessas plataformas”, conceitua a diretora. “Com cada um na sua casa, tivemos de fazer um esquema onde todos aprendiam todas as métricas, o que é um trabalhão, porque, além da sua própria fala, você tem de estudar e decorar a fala de outra pessoa. No mais, a falta da presença em si é um desafio também. Poesia falada é puro pulso, ritmo. Mas para tudo dá-se um jeito, principalmente quando há algo urgente a ser dito”, afirma. Componente d’O Bonde, Jhonny Salaberg endossa: “Este trabalho, especificamente, pede uma presença de execução e prática que não foi possível realizar em sua totalidade, até mesmo para os ensaios, já que a proposta de cadência e jogo com a palavra acontece na presença única e insubstituível dos atores e atrizes em cena, sem tempos de silêncios ou delay de plataformas digitais. A solução que encontramos foi sacrificar a noção do ao vivo e mergulhar no universo do cinema, mesclando as duas linguagens em uma proposta híbrida”. Com elenco formado por Ailton Barros, Filipe Celestino, Marina Esteves e Salaberg, com as participações em off de Grace Passô e Negra Rosa, Desfazenda – Me Enterrem Fora Deste Lugar cumpre sessões nestes sábado, às 20 h, e domingo, às 19 h. O grupo recebe ainda a roteirista Luh Mazza, a cantora Ellen Oléria, a poeta Luz Ribeiro e o artista amilton de azevedo para bate-papos e debates ao fim de cada sessão. A obra segue em temporada transmitida diariamente, às 20 h, no canal oficial do coletivo no YouTube, de 28 de junho até 14 de julho. As sessões são gratuitas.

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