PUBLICIDADE

'Enquanto as Crianças Dormem' discute a forma de se atingir a glória

Peça externa a crueldade que se esconde nos musicais

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O musical brasileiro, em sua fase mais recente, já foi marcado por diversos caminhos. O primeiro (e ainda o predominante) valorizou os espetáculos respeitando integralmente o formato da Broadway. Em seguida, vieram os biográficos, que mapearam boa parte dos grandes aartistas da MPB. Por fim, surgiram experimentações, como o doc musical, e agora, mais radical, o anti-musical - dessa essa última vertente, destaca-se o pioneiro Enquanto as Crianças Dormem, que estreia na quarta-feira, 31, no Teatro da Aliança Francesa.

PUBLICIDADE

Escrito e dirigido por Dan Rosseto, também autor das canções, o espetáculo utiliza as ferramentas básicas de um musical (como o uso de canções para comentar e dar prosseguimento à história) para poder negá-lo. “Sou fã de musicais, mas confesso que sempre fiquei incomodado com a visão edulcorada que a maioria traz e também com a maneira como se relacionam as pessoas que nele trabalham”, justifica Rosseto. “Assim, pretendi mostrar como são duros os sonhos que muitos artistas alimentam para chegar até a Broadway.”

Enquanto as Crianças Dormem, portanto, alivia nas canções, mas traz um texto cruel. A trama gira em torno de Kelly (Carol Hubner), uma fã do musical O Mágico de Oz que trabalha como atendente de uma rede de fast-food e sonha se tornar uma atriz de musical na Broadway. Sem perspectivas para realizar o seu desejo, a mulher fantasia sua rotina transformando em números musicais momentos de seu dia a dia: um dia difícil na lanchonete se torna um show no qual ela é a grande estrela.

Falsa alegria. Os momentos de felicidade correspondem aos devaneios de Kelly, a garota que sonha com a fama na Broadway Foto: Leekyung Kim

Visto por esse ângulo, pouco ou nada difere de muitos musicais que detalham a sofrida luta dos sonhadores. Mas Kelly trabalha na lanchonete mais imunda da cidade. Lá, é constantemente recriminada pelo seu gerente (Juan Tellategui), que conta com o auxílio de um funcionário puxa-saco (Diogo Pasquim). Ela só encontra conforto com outro colega de trabalho (Haroldo Miklos), um ex-detento que tenta ajudá-la em seu inferno. A relação da garota com seus colegas é tão barra pesada que até um estupro coletivo acontece.

“Ela sofre tanto que precisa florear a vida imaginando números musicais”, explica Carol Hubner. Nesses momentos, os personagens perdem sua vilania e se transformam em alegres participantes de um momento jovial. No entanto, basta um fato insignificante (como a queda de um balde) para Kelly ser arrastada para a dura realidade.

A situação parece melhorar quando a garçonete conhece, em um supermercado, Ellen (Carolina Stofella), uma mulher que, depois de conhecer a triste rotina da garota, revela sua disposição de ajudá-la de uma forma espetacular, arrumando um passaporte e financiando sua passagem para Nova York. Ellen, porém, não passa de uma aliciadora, que busca pessoas desesperadas , portanto facilmente convencidas a se transformarem em “mulas”, ou seja, carregadoras de drogas para a América.

“Sempre fui fã de O Mágico de Oz, o primeiro filme que vi em minha vida”, conta Rosseto. “Mas, por trás de todo aquele brilho, havia também uma maldade e isso me inspirou nesse musical.” Assim, Kelly é uma Dorothy do terceiro mundo, cujos tios (que no mundo do sonho se transformam em Espantalho, Leão e Homem de Lata) são representados pelos três homens que com ela trabalham na lanchonete. E Ellen representaria o Mágico que proporciona à menina a chance de conhecer o que para ela representa Oz: a Broadway. “Meus personagens não passam por uma redenção”, avisa o escritor/diretor. “Os números musicais são como um véu que encobre a crueldade.”

Publicidade

Inicialmente, Rosseto planejava construir uma dramaturgia baseada no encontro de duas mulheres em um supermercado. Aos poucos, já com a disposição de construir um musical seguindo uma linha própria, ele aumentou o escopo da ação e, partindo do imaginário de Oz, conseguiu chegar ao seu anti-musical. “À medida que conhecíamos detalhes da história, ficávamos cada vez mais espantados”, conta Haroldo Miklos, que construiu uma bela metáfora para o espetáculo: “Os musicais tracionais assemelham-se à imagem da mariposa que busca a luz e lá se sente realizada. No texto de Dan, porém, a mariposa acaba queimada pela luz.”

O choque de realidade, aliás, atingiu todo o elenco. “Kelly me ensinou que é importante sonhar, mas sempre com os pés no chão”, comenta Carol.

ENQUANTO AS CRIANÇAS DORMEM Teatro Aliança Francesa. Rua General Jardim, 182. Tel.: 3572-2379. 4ª e 5ª, 20h30. R$ 50. Estreia 31/5. Até 27/7

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.