Os planos para 2020 já parecem fazer parte de um passado distante. Nas primeiras semanas de março, a Armazém Companhia de Teatro apresentava sua versão de Hamlet para uma plateia de 600 pessoas no Teatro Riachuelo, no centro do Rio. Mas antes que o mês chegasse ao fim, o grupo se viu, como tantos outros, impedido do convívio com o público. Ao menos presencialmente. Para a maioria dos coletivos e das companhias teatrais no País, a estabilidade representa uma conquista que pode levar décadas – vai da intimidade criativa ao financiamento do trabalho contínuo –, mas que pode ser perdida em dias. Em 2019, a Petrobrás revisou patrocínios, e a Armazém começou o ano apertando os cintos: a estatal retirou a companhia de seu portfólio de investimentos. “Os planos que já tinham mudado de um ano para o outro foram mudados novamente, agora em questão de dias”, explica a atriz Patrícia Selonk.
Nesta sexta, 17, a companhia adentra o reino das videoconferências com Parece Loucura, Mas Há Método, uma espécie de “teatro emergencial” e menos um “espetáculo online”, segundo a atriz. “Tivemos que observar questões mais urgentes, em como desenvolver um novo trabalho dentro das plataformas.”
Reunir uma plateia, afastada pelo confinamento, não deveria ser desesperador em tempos de redes sociais. O grande obstáculo, para companhias, é que muitas delas desembarcaram na internet sem saber como conversar com seu público nesse ambiente. O discurso teatral, tão natural ao palco e adquirido em anos de carreira, chega com ruído na terra dos youtubers e de profissionais que praticamente nasceram no digital. “Eu via as plataformas online como exposição de discurso de ódio, como é até hoje, ou de perfis bastante consumistas, do corpo e da beleza ideal”, comenta Patrícia.
Ela defende que o teatro emergencial da Armazém está longe de substituir a experiência olho no olho. Por outro lado, bons profissionais também conseguem reproduzir técnica e emoção na frente de uma webcam. “O pensamento precisou ser mais flexível. Mesmo assim, o trabalho de atriz se manteve em mim, a vontade de dialogar com o que está acontecendo. Meu trabalho me dá saúde mental.”
Na prática, a montagem exibida na plataforma Zoom e dirigida por Paulo de Moraes se apega à ferramenta mais primordial da internet: a interação. Apresentada como uma espécie de jogo, a montagem traz inúmeros personagens de Shakespeare para um duelo de textos. Um mestre de cerimônias apresenta ao público as regras e, com o uso de um liquidificador, sorteia números. Os personagens contemplados apresentam trechos de suas histórias. “Ao fim de cada etapa, o espectador é convidado a escolher qual história deseja continuar”, diz o diretor. A trama rejeitada fica fora da narrativa.
No elenco, além de Patrícia, estão Charles Fricks, Isabel Pacheco, Kelzy Ecard, Liliana de Castro, Luis Lobianco, Marcos Martins, Sérgio Machado, Vilma Melo e Jopa Moraes, que também assina o roteiro. “Queremos que as pessoas participem ativamente, e usar essas plataformas ajuda a moldar a interação, dá um novo ritmo, mesmo que para nós ainda seja uma grande experimentação”, conta Patrícia. “A oportunidade também é de reunir parceiros, já que todos foram afetados pela pandemia.”
As personagens escolhidas não são aleatórias. “Buscamos nomes menos conhecidos do grande público, e também figuras muito distintas entre si”, ressalta Paulo. A ambiguidade de Ricardo II, interpretado por Patrícia, compartilha o mesmo espaço do guerreiro bufão Falstaff, papel de Luis Lobianco. “Há tramas de tirania, cômicas, para oferecer ao público a chance de ouvir histórias de guerra, conspiração política, ou algo sobre o amor. E, no outro, pode ser tudo diferente”, conta o diretor.