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Em 'Noite", Grupo Sobrevento ecoa memórias de vizinhos

Espetáculo reúne lembranças de moradores do bairro e inverte lógica do teatro de objetos

Por Leandro Nunes
Atualização:

Em 2013, o Grupo Sobrevento levou ao palco a história de São Manuel Bueno, conhecido como o santo da dúvida. A narrativa inspirada no obra de Miguel de Unamuno mostrava a vida de uma cidadezinha e o drama do homem que tinha como ofício fortalecer a fé do próximo, embora fosse, ele mesmo, cético. 

No lugar de atores, pedaços de madeira talhados rusticamente despertavam a imaginação do público para as personagens. Em cartaz na sede da companhia, o novo espetáculo Noite dá um rumo bem diferente ao trabalho do Sobrevento. 

Instalação. Em cada nicho, atores vestem os suntuosos figurinos de João Pimenta Foto: JF DIORIO / ESTADÃO

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O grupo fundado em 1986 é conhecido na cidade por exercitar a linguagem da animação e do teatro de objetos, que não deve ser confundido com teatro de bonecos. “Os bonecos são responsáveis por contar a história, já os objetos carregam em si uma memória”, conta a atriz e diretora Sandra Vargas Na peça sobre São Manuel Bueno, as figuras de madeiras eram postas no palco, mas não havia a manipulação como acontece com os bonecos”, explica. 

Para o ator e diretor Luiz André Cherubini, a história do santo da dúvida ainda correspondia a um ideal de teatro dramático. “Existia a história e a presença das personagens.” Noite vai quase na contramão dessa concepção. Durante meses, o grupo decidiu que os moradores do bairro do Belenzinho – onde fica a sede do Sobrevento – deveriam participar, de alguma forma no novo espetáculo. O palco do grande galpão deu espaço para o projeto Museu da Vizinhança, conta Sandra. “Convocamos os vizinhos para nos contar histórias de suas vidas. A regra era que as memórias tinham de vir de objetos pessoais.”

Em semanas, foram reunidos objetos variados, desde peças de decoração, roupas, instrumentos musicais, fotos, e junto, os relatos dos donos, como em museu real. Em alguns casos, os proprietários não quiseram emprestar os objetos. “Um fotógrafo fez o trabalho de fazer imagens dos objetos que formaram uma parte especial do nosso museu”, acrescenta Cherubini. Outros não tinham objeto a oferecer, mas trataram de criar um, como foi a história de uma senhora. “Ela preparou um número de dança, que gravamos e também ficou exposto aqui. Foi destinado ao filho que nunca mais viu”, completa o ator.

Para a concepção da peça, o grupo fez uma seleção de relatos do museu e cada um ocupa um nicho da cenografia.  Se o teatro de animação costuma envolver o objeto – um pedaço de madeira ou caixa de fósforos – em uma aura fantástica e de importância central na cena, em Noite, uma tesoura, um prato, uma garrafa e uma caixinha de música são deslocados para o plano da poesia, da inspiração, embora estejam lá. Juntos, dão lugar aos suntuosos figurinos do estilista João Pimenta. “Consideramos que cada depoimento foi como um presente”, conta Sandra. “Então cada espaço deveria figurar com um lugar especial, de afeto despertado pela memória.” Nas histórias, a peça retoma o que se chama drama estático, conceito do poeta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck que confina o ator na posição de quase boneco de cera, alheio ao exterior e entregue apenas à condição de sua existência. Nesse jogo, o drama estático desafia a formação de conflito, de crise e freia a ação na cena. “Queremos que as histórias sejam suficientes”, explica Cherubini. “Maeterlinck afirmava que não era mais possível fazer drama, pela transformação dos tempos atuais e que não caberia dentro do palco, como representação. A ideia do estático é para acentuar o drama dentro do próprio sujeito”, completa. Na peça, a plateia vai acompanhar histórias que acontecem no fluxo da memória dos donos desses objetos. Entre lembranças de lugares, sensações, a morte é um fio condutor que conecta todos eles. “Em geral, o objeto também concretiza e preenche a ausência, a perda”, diz Sandra. A divertida cena da costureira, que herdou a tesoura da mãe, joga com a história da mulher que trabalha em um cartório. A primeira vê na tesoura parte de um destino quase inevitável: seguir a profissão que a acompanha desde criança. A segunda faz do ofício uma missão para garantir que as pessoas tenham identidade. “Onde eu morava, as pessoas lavram terras e eu lavro documento.”

NOITE. Espaço Sobrevento. R. Coronel Albino Bairão, 42. Tel.: 3399-3589. 6ª, sáb., 20h30, dom., 18h.. Grátis. Até 24/3.

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