Em 'Kiev', família sepulta os 100 anos da Revolução Russa na piscina

Peça do dramaturgo uruguaio Sergio Blanco relê 'O Jardim das Cerejeiras' de Chekhov e retoma holocausto na capital ucraniana

PUBLICIDADE

Por Leandro Nunes
Atualização:

Quando Vladimir Putin precisou refrescar a memória da Ucrânia por conta dos conflitos recentes, o presidente russo ordenou que espalhassem cartazes antigos com a imagem de Stalin segurando uma criança no colo e a frase escrita: “A bondade de Stalin ilumina o futuro dos nossos filhos”. Quem se lembra, saberá que Putin fazia um alerta para o Holodomor, o Holocausto Ucraniano que matou entre 5 e 6 milhões de pessoas entre os anos 1932 e 1933.

PUBLICIDADE

Na versão de Roberto Alvim para a dramaturgia do uruguaio Sergio Blanco, os corpos despejados na piscina de uma casa ganham abstração com o Quadrado Negro Sobre Fundo Branco, do pintor Malevich. A peça que estreou ontem, 4, no Sesc Ipiranga, retrata o retorno de uma família à Rússia, após o regime de Stalin. “Ucrânia e sua capital sempre foram uma pedra no sapato da Rússia”, conta o diretor. “O que Putin fez ao lembrar das atrocidades de Stalin prova que ele também é capaz de fazer o mesmo.”

Como uma releitura de O Jardim das Cerejeiras, de Chekhov, a família descobre que sua antiga casa está prestes a ser demolida. No lugar, que servia de cemitério para presos políticos, agora será construído um shopping decorado com um pomar de cerejeiras artificiais. “Está aí a repetição como farsa, como simulacro. Fruto dessa transformação de cunho capitalista”, afirma Alvim.

Jardim. Peça relê obrade Chechov Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

O conflito se pauta pelos irmão vividos por Juliana Galdino e Otávio Martins que tentam esconder dos filhos dela os segredos da casa. Enquanto tentam impedir que fantasmas do passado voltem para assolar o presente, a venda da casa se abre para o futuro como esquecimento. De outro lado, um professor (Marat Descartes) precisa repensar o peso moral por anos de trabalho cedidos à Revolução.

Mas é do alto do Monumento à 3.ª Internacional, de Tatlin, e ao lado da estátua de Stalin - aqui suspensa de cabeça para baixo - que a família busca enterrar os frutos amargos e acobertar a culpa de um regime que também perseguiu artistas. “Além de Tatlin, é impossível não citar Maiakovski, que se matou depois de perceber que a revolução que ansiava não previa a liberdade de seus artistas. Ainda temos as meninas do Pussy Riot”, acrescenta o diretor sobre as integrantes da banda de punk-rock feminista que foram presas em 2012. E esse espanto também deveria despertar a consciência dos LGBT e a maneira de repensar a própria esquerda, questiona Alvim. “Eles esquecem que o regime matou e perseguiu gays e lésbicas com homofobia no último nível. Como seguir assim?”

Para o diretor do recente Leite Derramado, a condição atual dos 100 anos da Revolução de 1917, não ajuda a ponderar sobre os danos que causou, mesmo aqueles previstos pelo autor de O Jardim da Cerejeiras. “No fim das contas, capitalismo e comunismo tratam da acumulação de poder. Cada um com seu objetivo particular, seja para uma realidade de livre mercado ou para o ideal de unificação estatal. Para a URSS, o preço foi 20 milhões de mortos. Não dá para apagar isso.”KIEV Sesc Ipiranga. Rua Bom Pastor, 822. Telefone: 3340-2000. 6ª e sáb., 21h; dom., 18h. R$ 30 / R$ 15. Estreou ontem, 4. Até 10/9.

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.