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Em dificuldades financeiras, Ballet Stagium lança financiamento coletivo

Companhia tem quase 50 anos de história e foi responsável por levar a dança para o interior do Brasil

Por Fernanda Perniciotti
Atualização:

Que a situação sanitária instalada pela covid-19 condenou vários artistas e grupos à maior crise financeira de suas trajetórias, não é novidade. Tampouco que o Brasil não tem memória cultural e artistas com trajetórias políticas e históricas, que revolucionaram o País, são largados ao esquecimento e ao ostracismo. Quando as duas coisas se entrelaçam, temos a situação que tem vivido o Ballet Stagium

Ensaio da companhiaBallet Stagium Foto: Werther Santana/Estadão

Prestes a completar 50 anos de história, em 23 de outubro de 2021, a companhia, dirigida por Marika Gidali (83) e Décio Otero (89), tem vivido o período mais desafiador de sua história. A ausência de patrocínios, a dependência de agendas instáveis (e algumas suspensas) em teatros e instituições culturais e a falta de políticas culturais continuadas no Brasil ameaçam a sua continuidade. O grupo não consegue mais arcar com as despesas de seu funcionamento, e aquele espaço, na Rua Augusta, em São Paulo, que se tornou referência como um dos mais relevantes endereços de dança na cidade, no qual o grupo trabalha desde 1974, está ameaçado de desaparecer. Por isso, a companhia criou a campanha de financiamento coletivo Ballet Stagium – SOS – Travessia (kickante. com.br/campanhas/ballet-stagium-sos-travessia).  Criado em plena época do AI-5, durante a Ditadura Militar, o Stagium entrou em um ônibus, com seus bailarinos, diretores e técnicos, e desbravou estradas desconhecidas, Brasil afora, com espetáculos, aulas, palestras. A crítica de dança e pesquisadora da área da Comunicação Helena Katz conta que escreveu, há pouco, um texto para a homenagem que o Sesc-SP, um dos poucos parceiros de longo prazo da Cia., pretende fazer para celebrar o início dos 50 anos do Stagium. Em entrevista ao Estadão, ela explica o paralelo que traçou entre o projeto de Mário de Andrade, de mapear as danças do Brasil entre os anos 1934 e 1944, resultando na publicação Danças Dramáticas do Brasil (1959), e a ação do Stagium em percorrer o país. “Mário de Andrade andou pelo Brasil para coletar manifestações populares. Isso foi muito importante para conhecer o que se dançava pelo país. O Ballet Stagium faz o papel de Mário de Andrade ao inverso, porque não recolhe, mas leva uma proposta de dança para conversar com a dança que estava sendo feita naquelas cidades todas pelas quais eles passaram. Uma proposta de dança que poderíamos ver como ‘glocal’. Um balé (global) adaptado ao Brasil (local). Na esteira da Semana de 1922, eles estavam interessados na renovação das linguagens artísticas.”  O balé que era produzido nas academias e escolas de danças nos interiores do País estava vinculado a um modelo colonial, ou seja, organizado a partir de interesses, temáticas e estruturas dos clássicos europeus. “O Stagium tem uma característica desbravadora, porque explicita a vinculação colonial entre o tipo de balé que se fazia aqui, e o que existia fora daqui. O que eles vão propor é um balé atado a temas brasileiros, misturado com gestos das danças da cultura popular”, explica Helena Katz.  O olhar coreográfico de Décio Otero se tornou uma referência no País, criando um balé moderno à brasileira. As 85 obras trazem a história do Brasil ao centro do palco, desde o genocídio indígena e a questão quilombola a célebres figuras da cultura popular brasileira, como Elis Regina, Adoniran Barbosa e Ary Barroso. Marika Gidali diz ser um jeito de “fazer o balé falar português”.  A bailarina, pesquisadora de história da dança e professora da PUC-SP Ana Teixeira, que dançou e participou do corpo diretivo do Balé da Cidade de São Paulo, conta como o encontro com uma obra do Stagium, em Porto Alegre, nos anos 1980, impactou o seu modo de olhar para a dança.  “Tem que imaginar que eu era uma aluna de escolas de dança de Caxias do Sul, que estava em Porto Alegre. E então, assisti Holocausto com o Ballet Stagium, no Teatro São Pedro. O impacto maior foi justamente porque era uma estética completamente distinta do que se produzia nas escolas da região, que mantinham o padrão das grandes escolas clássicas. Tive a comoção estética de assistir uma companhia de homens e mulheres fortes, em cenas de morte e de ressurreição, em um fluxo constante entre palco e coxia. Quando vi aquele trabalho, pensei: é esse tipo de dança que eu quero fazer.”  A atuação do Stagium não ficou restrita aos palcos. A as obras foram dançadas na antiga Febem (agora Fundação Casa), escolas públicas, junto a populações ribeirinhas do Rio São Francisco, Xingu, escolas de samba, presídios, hospitais. A experiência no Xingu, em 1975, marcou a trajetória de Fábio Villardi, o mais antigo membro do Stagium, na Cia. há 45 anos. “Um momento que não me sai da memória, na minha primeira viagem com o Stagium, no Xingu, em um chão de terra batida, é o de Marika e Décio dançando e duas araras azuis sobrevoando a clareira que foi feita na mata para o Stagium dançar. É muito simbólico da relação da Cia com o Brasil.”  O compromisso político e estético do Stagium foi inaugural de um pensamento artístico no Brasil, que faz toda a área da dança tributária desse legado, mas, como ressalta Katz, “nem todos os da ativa, hoje, sabem que estão ligados ao que o Stagium desbravou nos últimos 50 anos.” Em 1972, o Stagium criou Diadorim, inspirada em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Agora, anuncia a campanha Travessia, que vem do mesmo Guimarães, em busca da possibilidade de continuar a caminhada. Porque, como bem diz o jagunço Riobaldo (personagem de Grande Sertão): “Como toda a alegria do mesmo momento, abre saudade. Até aquela – alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão”. 

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