As peças de Alexandre Dal Farra não trazem boas notícias. Na obra desse dramaturgo, que é certamente um dos mais interessantes de sua geração, fala-se invariavelmente de um mundo à beira do colapso, onde os homens rumam em direção a um destino sombrio, sem ter muita consciência do que acontece à sua volta. Em Refúgio, que cumpre temporada no Sesc Bom Retiro, o autor mantém esse espírito e sustenta o seu teatro “pré-guerra” (nomenclatura sugerida por ele próprio no programa do espetáculo).
A partir do que seria uma festa infantil, regada a balões coloridos e docinhos, o autor – que também responde pela direção – instaura um ambiente de crescente absurdo. A criança a ser celebrada nunca aparece. Os adultos enveredam por uma conversa que mais se assemelha a um amontoado de solilóquios, em que ninguém presta muita atenção ao que o outro diz. Fracassa, assim, qualquer tentativa de mínimo consenso em torno de um assunto comum.
Trata-se de um procedimento usual para o teatro contemporânea: subverter o diálogo como forma tradicional do drama e apontar uma lente de aumento para as dificuldades de comunicação. A incomunicabilidade se coloca no horizonte desde o fim da Segunda Guerra, em autores como Harold Pinter e Samuel Beckett. Mas é peculiar a maneira como Dal Farra sustenta sua construção. A barbárie, a dissolução da civilização, a fragilidade dos laços sociais: Nada disso é tema para Refúgio. Desponta um teatro político, mas não com uma tese e uma antítese a serem debatidas. Antes de discutir um determinado assunto, a peça cria uma paisagem. Está a lidar com um mal-estar difuso, que não pode ser completamente compreendido. Trata-se não de explicar ao espectador a pretensa convulsão que se anuncia, mas de oferecer-lhe a sensação de vislumbrar o que acontece antes que tudo se dissolva.
Gradativamente, os personagens começam a desaparecer. Apenas somem sem deixar rastro e deixam atônitos os que permanecem em cena. Ninguém sabe ao certo o que se passa. Terão sido sequestrados ou tomaram a decisão de partir sem deixar vestígios? A estranheza se acentua. Aspecto que poderíamos creditar à recente aproximação entre o dramaturgo e a ficção de Pier Paolo Pasolini.
Em 2016, o autor assinou uma adaptação de Teorema – filme de Pasolini lançado em 1968 – para o Grupo XIX de Teatro. Ainda que a trama de Refúgio se revele muito diferente, parece haver uma ideia do cineasta que subsiste nesse novo trabalho. A mudança não se dará calmamente e sem sobressaltos. A ruptura da ordem vigente pressupõe violência, caos e uma dose de indeterminação. Tampouco as explicações se colocam no horizonte. Em nenhum momento insinua-se sequer a possibilidade de que algum dos desaparecimentos ou das conversas sem sentido sejam esclarecidos. O mistério faz parte da narrativa e o lugar de onde se observa a desorganização do mundo é um núcleo familiar outrora em equilíbrio. Ou desde sempre precário?
O cenário de Marisa Bentivegna está em sintonia com a proposta da encenação. Aos poucos, o ambiente da casa burguesa se desestrutura. Dissolvem-se os signos da normalidade: cadeiras e móveis estão de pernas para o ar em um cômodo que se torna menor a cada troca de cena. A direção encontra respaldo também em um bom elenco, que deixa o humor das situações para desfrute da plateia e consegue sustentar o nonsense até o fim.
Habituados a trabalhar com Dal Farra, André Capuano e Clayton Mariano encontram um bom parceiro de jogo em Marat Descartes, que passa da apatia ao desespero e daí ao cinismo. Mas a montagem cresce, sobretudo, pela participação de Fabiana Gugli, perfeita em sua personagem que serve de esteio ao espanto do espectador. Cabe a ela perceber que algo está fora de ordem e vislumbrar o abismo que se avizinha.
REFÚGIO. Sesc Bom Retiro. Alameda Northmann, 185, tel. 3332-3600. 6ª e sáb., às 21h; dom., às 18h. R$ 9/ R$ 30. Até 29/7.