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Cia OmondÉ estreia no Rio a quase inédita 'A Mentira', de Nelson Rodrigues

Texto escrito em 1953 foi publicado em 18 capítulos na revista Flan e tem direção de Inez Viana

Por Roberta Pennafort
Atualização:

Uma família, pai, mãe, quatro filhas e três genros, que desmorona diante da notícia de que a caçula, Lúcia, de 14 anos, está grávida – ela não revela de quem. A Mentira foi escrita por Nelson Rodrigues (1912-1980) em 1953, em 18 capítulos publicados na revista Flan, e só saiu como romance em 2003. Agora, ganha temporada no Teatro Gláucio Gill, em Copacabana, pelas mãos da Cia OmondÉ, sob a direção de Inez Viana.

Adorada obsessivamente pelo pai, machista e autoritário com os outros membros da família, Lúcia, temporã, é uma menina “cheia de manhas e mimos”. Um dia, sente-se mal, é examinada, e o médico sentencia: “Vai ter neném”. Todos à sua volta lhe perguntam quem a engravidou. Ela não responde. As desconfianças acabarão por implodir o lar, resultando até em morte. Ao fim da trama, o espectador descobre que foi induzido ao erro todo o tempo, daí o título do texto.

Atualidade. Peça traz temas como gravidez na adolescência, aborto e misoginia Foto: ALINE MACEDO

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“Toda a obra dramatúrgica do Nelson vem d’A Mentira, é um embrião. E é uma peça com questões atuais: a gravidez na adolescência, a discussão do aborto, a misoginia. A mulher é literalmente o pano de chão”, conta a diretora, citando um dos parcos elementos cênicos da montagem. “Os diálogos parecem subtextos. É o que as pessoas pensam das outras, e não dizem. Nelson diz”, aponta. “A doença familiar, as obsessões, a atração do pai pela filha, os elementos rodriguianos estão ali”, considera o ator Leonardo Brício, no palco com Denise Stutz (revezando com Inez), Junior Dantas, Zé Wendell, André Senna e Elisa Barbosa e Lucas Lacerda. “O ser humano não deu certo. A gente tenta ser sadio nas relações familiares, mas existe a insalubridade. As doenças estão aí.”

Cheio de recursos e diferentes sotaques (tem carioca, potiguar, paraibano, mineiro e baiano), o elenco da OmondÉ, companhia que faz dez anos com sete espetáculos no repertório, e muitos prêmios, assume os papéis alternadamente. 

É o primeiro Nelson do grupo, que vai celebrar a primeira década com a estreia de uma obra inédita de Ariano Suassuna, a convite da família, no sertão da Paraíba. Antes, em novembro, A Mentira participa do Projeto Ano da Dramaturgia Brasileira, no Sesc Ipiranga, com uma leitura dramatizada no estilo radionovela.

A temporada no Gláucio Gill não tem patrocínio – a pequena renda gerada por oficinas de leitura do texto para estudantes arca com os custos básicos. “Para nós, neste momento do Brasil e do Rio, é um ato revolucionário estar em cena”, diz Inez, que fez a adaptação da peça. 

Pouco conhecido mesmo por quem domina a produção jornalística e teatral de Nelson, A Mentira saiu em livro, pela Companhia das Letras, 50 anos depois de escrita, graças ao trabalho arqueológico e devotado do diretor gaúcho Caco Coelho, estudioso obstinado do legado rodriguiano. À época, ele fez uma montagem no clube de futebol do coração do escritor, o Fluminense. 

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“Este é o nascimento das tragédias cariocas de Nelson. Depois vêm A Falecida, Boca de Ouro, O Beijo no Asfalto... A Mentira é Nelson no esplendor da linguagem”, define Coelho. Em 1953, Nelson já havia escrito seis romances com o pseudônimo de Suzana Flag, e um como Myrna, sendo A Mentira o primeiro a levar sua assinatura. 

Coelho começou a escavar os escritos de Nelson em 1995. Dirigiu cinco espetáculos dele – o mais recente é Valsa Nº6, com o qual deve viajar mais ainda esse ano – e editou oito livros. “Nelson tinha a preocupação de que sua obra permanecesse. Para isso, não falsificava o ser humano. É o autor mais atual que nós temos”, afirma. Até 2020, quando se completam 40 anos de sua morte, ele quer lançar A Geografia de Nelson Rodrigues, com os caminhos percorridos pelo pensamento e a obra do autor.

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