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Antunes Filho dirige a peça ‘Blanche’, falada em língua imaginária

Inspirada no clássico 'Um Bonde Chamado Desejo', de Tennessee Williams, peça será encenada no Centro de Pesquisa Teatral (CPT)

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Ingmar Bergman, um dos maiores cineastas de todos os tempos, contava que, certo dia, em 1971, estava com o colega Kjeli Grede na sala da SF (companhia estatal sueca de filmes), quando viu uma caixa com vários rolos de filmes. Questionado, o projecionista disse que não passava de uma droga de um filme russo. Na tampa, constava o nome do diretor Andrei Tarkovski. Interessados, Bergman e Grede deram um trocado ao homem, que aceitou projetar Andrei Rublev.

“Saímos cambaleando da sala, com os olhos fundos e completamente tocados, entusiasmados e oscilantes. O notável é que não havia legendas em sueco. Não entendemos nenhuma palavra dos diálogos, mas, mesmo assim, ficamos atordoados”, disse Bergman. É essa a fruição ambicionada por Antunes Filho que, no dia 24, estreia seu novo trabalho: Blanche, inspirado no clássico Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams (1911-1983). A peça será encenada no Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, espaço criado por Antunes e localizado no 7.º andar do Sesc Consolação.

  Foto: CLAYTON DE SOUZA|ESTADÃO | ESTADÃO CONTEÚDO

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A trama é a mesma – o triângulo amoroso formado pelo truculento Stanley Kowalski, que age por instinto na proteção de sua mulher, Stella, e de seus poucos bens, ameaçados pela presença da irmã dela, Blanche Dubois, mulher que exibe uma ambígua neurose, provocada pela fome de amor e desejo de compreensão.

A trama inspirou o filme dirigido por Elia Kazan em 1947, chamado no Brasil de Uma Rua Chamado Pecado e estrelado por Marlon Brando e Vivien Leigh, e diversas montagens, como a que ainda está em cartaz no Tucarena, com Maria Luiza Mendonça no papel de Blanche.

O que torna a montagem de Antunes Filho um acontecimento único, no entanto, é o idioma falado pelos atores: ao contrário do português, os diálogos são falados em fonemol, uma língua imaginária criada e desenvolvida por Antunes Filho, que não tem relação com nenhuma conhecida e que incentiva cada espectador a imaginar e criar a própria dramaturgia.

“São símbolos do inconsciente, não da razão”, explica o encenador. “Assim como os atores que, com o fonemol, emanam imagens inconscientes, o mesmo deve suceder com o espectador que, sensibilizado na participação, vai agir como DJ, criando sua dramaturgia particular.”

Antunes comunga da mesma profissão de fé de Hélio Oiticica, que via o artista não como um criador cuja obra deveria ser contemplada, mas como um motivador. “A criação como tal se completa pela participação do espectador, agora considerado ‘participador’”, dizia o artista.

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Aparentemente incompreensível, o fonemol, na verdade, traz vestígios de palavras conhecidas, especialmente nomes próprios. No programa da peça, que cada espectador vai receber antes do início do espetáculo, há uma fotonovela com cenas de um tenso momento da trama (o estupro que Blanche sofre de Stanley) e os diálogos são ditos na língua imaginária. Em um determinado momento, Blanche diz: “aptamPodeacontecerumatragédiaxinesitatia”.

“Os primeiros dez minutos causam estranhamento mas, depois, o público embarca, criando seus diálogos”, garante Antunes, que já experimentou o fonemol na peça Nova Velha Estória (1991), uma instigante releitura da fábula de Chapeuzinho Vermelho.

Para os atores, a experiência também é única. “A percepção é mais intuitiva, vem do inconsciente”, observa Felipe Hofstatter, que vive um vigoroso Stanley Kowalski. “A essência do texto original está presente”, acredita Thiago Brito, responsável pela aprofundada pesquisa que, entre outros benefícios, resultou no programa da peça.

“É como se disséssemos as frases do Tennessee, mas em outro mundo, o dos sonhos”, comenta Marcos de Andrade que, em mais um lance provocativo de Antunes Filho, vive Blanche Dubois – papel que ele desenvolve com minúcias de detalhes gestuais, contribuindo com uma rara e bela interpretação que auxilia o espectador em sua viagem sensorial.

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Mais que uma provocação, Antunes decidiu escalar um ator para o principal papel feminino justamente pela condição de Blanche. “Ela representa todo o indivíduo não adaptado ao mundo de hoje”, comenta a assistente de direção Francieli Fischer, para quem a presença de Marcos de Andrade em cena é uma metáfora de um estado fronteiriço, limítrofe entre a realidade e a representação, conceito que segue o raciocínio feito pela pesquisadora Ligia Canongia sobre o travesti: situação-limite entre o real e o ficcional.

É como um ser e não ser, parafraseando Hamlet. Antunes Filho classifica o intérprete desse tipo de personagem como um performer. “É aquele ator ou artista que se torna agente de crise, visando quase sempre ao inédito para sensibilizar e transformar o humano, o social e o político arraigado”, explica ainda.

Blanche, assim como sua irmã Stella (maravilhosamente interpretada por Andressa Cabral), descende de uma tradicional família decadente do sul dos Estados Unidos. “Ela encarna acima de tudo os tempos modernos que se vão”, observa Antunes, apontando a ambivalência e a sensação de exclusão vividas pela personagem. “Por isso que ela é taxada como louca por não se encaixar nos padrões vigentes”, completa Francieli.

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O elenco é completado por Alexandre Ferreira, Luis Fernando Delalibera, Stella Prata, Vânia Bowê, Bruno Di Trento, Antonio Carlos de Almeida Campos e Guta Magnani.

BLANCHE CPT. Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-3000. 4ª a 6ª, 20h; sáb., 17h. R$ 30. Até 25/6. Estreia 4ª (23/3)

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