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Antônio Abujamra: o provocador era, no fundo, um homem de afetos

Artista, de 82 anos, morreu na manhã desta terça-feira

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Por Redação
Atualização:

Durante anos, tentei convencer Antônio Abujamra a me contar sua vida, pessoal e artística, e ele sempre desconversou. Eu argumentava que só podia ser superstição de árabe. Abujamra ria e não dizia nada. Como isso, ele - e eis um problema - é o único diretor teatral da sua geração sem biografia ou um livro com o resumo de suas concepções estéticas e o histórico das grandes encenações do artista que, já de início, dirigiu Cacilda Becker. Carreira absolutamente consagrada pelo alto nível literário nas peças e na inventividade para o palco. O que não o impedia de repetir, sempre, que tinha mais fracassos do que sucessos na profissão. Fixou este mantra defensivo e inexplicável, assim como jamais comentou uma crítica favorável ou com reservas. Jamais quis igualmente lembrar ter sido crítico na juventude. 

Era um esquecimento divertido em nossos pequenos jogos de indiretas. Manteve inalterada a persona do provocador, do cético, quase cínico às vezes, quando, no fundo, era um homem de afetos, o que se notava aqui e ali. Comentou o filho que a atriz Glauce Rocha perdera uma gravidez mal sucedida com a compaixão de irmão (Abu que dizer pai em árabe). A maravilhosa Glauce, com quem Abujamra fez Electra, de Sófocles, em 1965, no Rio, debaixo da perseguição da censura que colocou até polícia no teatro. Nestas horas, desapareceria o “provocador”.

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Mantínhamos uma relação de conterrâneos, e ele adorava dizer com uma ponta de ironia sermos ele, Ary Toledo, a cantora Vânia Bastos e eu “as pérolas de Ourinhos” onde nasceu, mas saiu criança para Sorocaba e, depois, Porto Alegre sob a proteção de um tio. No Rio Grande, estudou jornalismo e filosofia e descobriu o teatro. Antes de ingressar definitivamente no profissionalismo, estudou em Paris, com Roger Planchon, o pioneiro da divulgação na Europa dos métodos teatrais de Bertolt Brecht. Na volta, dirigiu Cacilda em Raízes, de Arnold Wesker (1961), o início de uma história que Abujamra não quis escrever ou relatar mas que compõe realizações amplamente sabidas, o que inclui a fundação de companhias teatrais, encenações com os principais intérpretes ao mesmo tempo em que estimulava novos talentos. Teve longa carreira na TV e breve atuação no cinema quando decidiu ser um ator excelente na composição de tipos. 

Em teatro, uma de suas maiores qualidades foi a de orquestrar elencos numerosos conseguindo rendimento harmônico de todos. Sabia tudo do palco onde unia preparo cultural à audácia de experimentar. Criador político sem pudor da comédia leve. Valia a sua marca, a invenção, a assinatura Abujamra. Como ator (e apresentador de Provocações, na TV Cultura), estabeleceu um estilo. Era o personagem e era a sua personalidade. Apaixonado e meio distante (aprendeu com Brecht e era seu jeito na vida). 

Partiu dormindo, embora não aparentasse problemas de saúde. Acho que se foi de saudades de Belinha. Quem o viu chorando no velório da sua mulher, percebeu a ternura que o provocador tinha dentro de si. 

Não escrevemos sua biografia, Abu, mas fica na memória o dia em que quase começamos. Você, em súbito rasgo de entrega, falou do passado longínquo: “Meu pai era mascate. Andava por todos os lados vendendo meias para as moças bonitas, acompanhado por meu irmão João, que mascateou bastante também. Família sofrida, mãe com dez filhos. Tio Taufic, em Porto Alegre, era o único semi vitorioso, tinha uma loja de tecidos”. Tudo bem Abu. Foi só o terceiro sinal. Maktub. 

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