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Antunes faz 'teste' com Nelson vertiginoso

'Falecida Vapt Vupt' traz o veterano diretor em saudável movimento de renovação

Por Beth Néspoli
Atualização:

Foi polêmica a passagem de A Falecida Vapt Vupt pelo Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto. A mais recente encenação de Antunes Filho com os atores do Grupo Macunaíma provocou reações para além da simples divisão da plateia entre "gostei e não gostei". Houve quem tenha saído muito irritado com os ruídos da ‘cenografia viva’ dessa montagem - um boteco com seu burburinho característico, entra e sai de garçons, música alta o tempo todo -, na qual o diretor buscou testar uma estética que desse conta do bombardeiro de imagens e sons do cotidiano urbano.

 

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"Quis trazer o azáfama da vida contemporânea para o palco e estou feliz. Tem gente que vai odiar, outros vão gostar, e isso é legal, o importante é que se discuta. Como diz Peter Brook, teatro começa quando abaixa o pano final", diz Antunes Filho. A entrevista é dada na sala de ensaio do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), depois das apresentações no festival e pouco antes da estreia em São Paulo, amanhã, no Sesc Consolação, dessa sua nova versão de A Falecida. E nessa conversa, Antunes Filho confirma as impressões das leituras críticas, tanto a que foi publicada no Estado sobre o espetáculo a partir das apresentações de Rio Preto, quanto a dos especialistas contratados pelo evento (leia nesta página) - A Falecida Vapt Vupt é um experimento no caminho da encenação do romance Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, em processo de ensaio.

 

Como tal, traz as arestas e o estranhamento que todo ‘teste’ de uma nova estética carrega. Mas tem o mérito, entre outros, de mostrar Antunes Filho em movimento, buscando renovar-se, correndo riscos à véspera de completar 80 anos, em dezembro. Não é pouco. Em tempos de criações ‘vapt vupt’, esse diretor adiou mais uma vez a estreia de Policarpo Quaresma, que há muito prepara. Talvez em busca da síntese entre seus dois últimos experimentos, como ele próprio define, "díspares": os silêncios, pausas e a profundidade de Foi Carmem, ainda em cartaz e, no outro extremo, a aceleração e a sobreposição de imagens na carregada superfície de A Falecida Vapt Vupt.

 

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"Já servi muito ao Nelson, agora ele teria de me servir. Mais importante do que qualquer autor é sua expressão cênica", diz Antunes. Seu desejo era testar sobreposição de tempos e espaços. Daí a escolha desse texto cuja ação, vertiginosa, se passa em muitos cenários, desde a residência de Zulmira e Toninho, passando pela casa de uma cartomante, uma Igreja Teofilista, uma funerária e até o estádio do Maracanã. Ambientes que nessa encenação vão sendo desenhados à vista do público pelo trânsito dos personagens entre as mesas, sempre invisíveis aos frequentadores do bar.

 

"Quem olha para o palco verá, no boteco, uma imagem do pintor Hopper naquela figura solitária numa das mesas, na outra, a figura do autor criando a peça naquele momento. Ele está num tempo, os personagens, em outros", argumenta Antunes. Ele cita ainda as imagens que ‘flutuam’ na pintura de Chagall como uma das fontes de inspiração. "Imaginava isso, aqueles caixões passando sobre as mesas e cabeças das pessoas no bar."

 

Vale lembrar, não é a primeira abordagem desse diretor dessa peça que o autor definiu como tragédia carioca e já foi tratada como comédia de costumes. A ação transcorre vertiginosa rumo à morte da tuberculosa Zulmira (Bruna Anauate), que sonha com um enterro de gala como única possibilidade de redenção de seu cotidiano medíocre e da culpa que carrega por uma traição oculta. Para tanto, ela própria prepara seu funeral, tratado com Timbira (Marcos de Andrade), e aposta no apoio que virá do empresário Pimentel (Adriano Bolshi). Mas, para que tudo sai conforme planeja, terá de contar com a colaboração, após sua morte, do marido Toninho (Lee Thalor).

 

Antunes já explorou os aspectos míticos - foi o primeiro a fazer isso - e expressionistas de A Falecida. "Não vou me repetir. Adoro os clássicos. Mas também gosto da pop art, Andy Warhol, Lichtenstein." A citação ao artista Roy Lichtenstein faz pensar na série A Catedral de Rouen. Entre 1893 e 1894, o impressionista Monet pintou 50 imagens dessa catedral gótica em quadros que mostravam a incidência da luz transformando a percepção sobre a forma. Em 1969, Lichtenstein criou a sua série em linguagem gráfica que remete não mais à catedral ‘real’, ou não só, mas à série de Monet.

 

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A Falecida Vapt Vupt funciona como obra autônoma, mas tem seu sentido ampliado se vista como arte de um tempo aqui e agora e em perspectiva dentro da obra de Antunes Filho. Ele próprio, em texto distribuído à imprensa, fala na troca da profundidade junguiana pela "bidimensionalidade" dura das gravuras da pop art. Como fez Lichtenstein, busca a atualização da linguagem expressiva, no seu caso, da arte cênica.

 

"Em cena está o boteco da zona norte com seu alto falante berrando o som dos morros cariocas. E agora não é assim o tempo todo, na rua, no metrô? A Zulmira é mais uma personagem daquele bar, ela se desprega dali. É a vida que fabrica aquele imaginário, o autor escrevendo ali, na hora. O espectador edita, é o DJ. Eu gosto do clássico, mas também gosto dessa sensação torta da vida contemporânea. Eu quero falar do Brasil com Policarpo Quaresma, dessa corrupção, mas não sei ainda como vai ser, estou experimentando."

 

O resultado dessa busca, no momento, é esse espetáculo que, superada a perturbação inicial provocada em alguns pelo excesso de ruídos, pode ser acompanhado com grande prazer. "Sob o aparente caos da cena há, sim, precisão e limpeza", diz o ator Lee Thalor. "Mas para chegar a isso, partimos de um caos real. Antunes propunha uma sujeira nos ensaios que era contrária ao que ele sabe fazer muito bem. Fomos os primeiros a sentir essa perturbação na pele." Quer saber mais? Antunes e atores do Centro de Pesquisa Teatral (CPT-Sesc) participam de uma programação especial da Cia. Paideia (leia nesta página). É a chance de conversar com o diretor sobre mais essa polêmica criação.

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