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Série 'Biohackers' trata da seleção artificial da vida na Terra

Ficção científica alemã, uma das mais comentadas da Netflix, tem sua segunda temporada já confirmada

Por Rodrigo Petronio
Atualização:

Em meados do século 20, Richard Feynman, um dos maiores cientistas contemporâneos, definiu duas ideias centrais para o mundo atual, uma da biologia e outra da física. Primeira: nada na biologia prova que a morte seja inevitável. Se o envelhecimento celular for desativado, um organismo pode se tornar amortal, ou seja, viver indefinidamente. Segunda: um dia será possível manipular a natureza átomo a átomo. Se conseguirmos modelar a natureza a partir de dentro, apagaremos de uma vez por todas a linha de sombra que separa o natural e o artificial. 

Cena da série alemã'Biohackers' Foto: Marco Nagel/Netflix

Hoje, a bioengenharia trabalha com um futuro em que essas duas ideias deixaram de ser especulações. Tornaram-se reais. Em breve (para quem puder pagar), morrer será opcional. E, em breve, as tecnologias quânticas não apenas processarão informações. Devem alterar, peça a peça, toda estrutura da natureza. Esses dois limites da ciência foram hoje transpostos por uma tecnociência disruptiva: a biotecnologia.  A possibilidade de editar a informação humana, desenhar a vida, gene a gene, erradicar doenças, controlar incidentes, potencializar os organismos e (no limite) controlar o futuro é um dos fatos mais abissais do mundo atual. Uma revolução de tudo que entendemos até agora por natureza e por vida nos aguarda.  Essa é a premissa desenvolvida pela série alemã Biohackers, criada por Christian Ditter, lançada em agosto pela Netflix, que já confirmou uma segunda temporada. A série está entre as mais comentadas e assistidas do streaming. E parece seguir uma tendência geral de crescimento de ficção científica em todo mundo.  Curiosidade: boa parte das novas produções audiovisuais de streaming nesse gênero não é do mundo anglófono, criador de clássicos e de obras-primas atuais como Westworld (HBO). São russas (Better Than Us), brasileiras (3% e Onisciente), francesas (Osmosis e Ad Vitam). E, claro, alemãs, como Dark, sucesso de crítica e público. Isso indica uma clara tendência do mercado a uma universalização do gênero. A série parte de uma storyline simples, baseada em duas linhas paralelas de eventos. A menina Mia (Luna Wedler) perdera a família de modo trágico. E descobre que nada foi por acaso. Os acidentes foram parte de um projeto bioexperimental de Tanja Lorenz (Jessica Schwarz), autoridade em manipulação gênica e diretora da empresa Lorenz. O objetivo da protagonista passa a ser então destruir a vida dessa doutora e revelar a verdade.  A narrativa se organiza em um crescendo. E consegue se sustentar em apenas três mundos: a universidade, a empresa e as cidades de Freiburg e Munique, onde tudo se passa. Embora o acesso à vida pregressa da protagonista ocorra pelo recurso convencional do flashback, a esfera existencial de Mia e seus fantasmas (conflito interno) se conecta bem à sua busca pela justiça e pela verdade (conflito externo).  Uma virtude é a ambivalência bem construída entre amigos-inimigos e os deslocamentos de papéis-personagens, essenciais para qualquer obra ficcional. Outra virtude é o debate científico em si mesmo: manipulação de privacidade em nome do bem comum; roubo de dados biológicos; limites éticos de algumas ações, mesmo sob o pretexto de salvar vidas; os avanços positivos-negativos da ciência; novos sistemas de biovigilância; a ilusão da liberdade de escolha; o egoísmo e o altruísmo como uma instrumento de poder; os algoritmos e o controle da vida; a previsibilidade e o acaso como fatores do destino humano.  E, por fim, uma pergunta: se as informações genéticas dos humanos têm tanto poder, quem vai controlá-las? Qual instituição deve legislar sobre elas? São perguntas feitas em uma conferência de 1999 pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk, e que geraram escândalo em uma Alemanha que viveu os horrores da eugenia e do nazismo. A série demonstra que continuam urgentes. A última cena dessa primeira temporada levanta essas questões. E abre mais um círculo concêntrico de hesitação em torno de quem seriam os dominantes e os dominados dessas caixas-pretas da vida.  Alguns problemas decorrem da dramaturgia. E de falhas na carpintaria narrativa. A fuga da protagonista, principal suspeita de um atentado bioterrorista em um trem, é mal costurada. A descoberta dos segredos de Mia por Jasper é o que se pode chamar de roteirada. Alguns diálogos são expositivos-declarativos. E a personagem de Tanja é de uma perversidade levemente caricatural, um problema para a representação da ciência no imaginário contemporâneo. Entretanto, o encadeamento das ações da metade em diante e a qualidade dos conflitos cena a cena nos forçam a olhar com mais cuidado para a obra.  Ademais, o tema em si é abissal. Durante bilhões de anos, a vida na Terra se guiou pela seleção natural, descrita por Darwin. Isso quer dizer que o Acaso, esse grande Deus, como queria Nietzsche, sempre deu a palavra final. Estamos agora adentrando uma nova era da vida: a seleção artificial. Isso quer dizer que os humanos, esses carrapatos do universo, começarão a ter tamanho controle sobre as leis da vida e da natureza que precisaremos redefinir bilhões de anos de vida e de natureza.  Pode-se dizer que Biohackers ficou aquém da montanha que escolheu escalar? Pode ser. Outra hipótese seria imaginarmos que nenhuma obra jamais conseguirá escalar sozinha uma montanha dessa magnitude. Nesse sentido, esse primeiro passo em direção a esse futuro descomunal que nos espera, de seres humanos e de seres vivos hackeados, é um passo decisivo. E talvez não pudesse ter sido dado de modo muito diferente do que foi.  *É ESCRITOR, FILÓSOFO, PROFESSOR TITULAR DA FAAP E PESQUISADOR ASSOCIADO DO TIDD|PUC-SP

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