Será que ‘Loki’ é uma verdadeira variante da Marvel? Ou apenas um experimento divertido?

A mais recente série de super-heróis da Disney+ abraçou o caos em sua narrativa. Será que a Marvel está disposta a fazer o mesmo em seu universo de filmes e programas de TV em constante expansão?

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Por Maya Phillips
Atualização:

Uma coisa que a Marvel sabe fazer é expandir uma história. Pense nos primeiros dias do Universo Cinematográfico Marvel (MCU, na sigla em inglês) no início dos anos 2000. A chamada Fase 1 tinha por objetivo construir uma lista de super-heróis com filmes individuais que se encaixariam num grande filme de crossover: Os Vingadores. Uma década e meia depois, os crossovers viraram arroz-com-feijão, os easter eggs são obrigatórios e uma enxurrada de novos filmes e séries de TV continua a fornecer um influxo de histórias e personagens que se ramificam em seus próprios universos.

Tom Hiddleston em cena de 'Loki' Foto: Disney+/Divulgação

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Você até poderia dizer que o MCU se assemelha a uma linha do tempo ramificada. Pelo menos é o que diria um membro da Autoridade de Variância Temporal (ou Time Variant Authority, TVA), o órgão burocrático que está no centro da série Loki, da Disney+. Porque, apesar de toda a diversão interdimensional da série, Loki, que terminou na semana passada, é um diálogo filosófico que também funciona como um metacomentário sobre todo o storytelling da Marvel. O tema central da série – que fala sobre o valor da ordem versus o caos – reflete como o MCU, conforme se expande pela Disney+ e além, alternativamente apresenta e rompe com narrativas lineares e tipos de personagens.

Embora Loki (Tom Hiddleston), que às vezes é inimigo e outras vezes aliado dos Vingadores, tenha sido morto por Thanos em Vingadores: Guerra Infinita, o asgardiano agora aparece – ressuscitado! – em sua própria série. Mas é apenas uma ressurreição em termos de marca: a série se centra numa versão anterior de Loki, aquele que escapa da Batalha de Nova York, no primeiro filme dos Vingadores, com uma todo-poderosa caixa de luz (conhecida como Tesseract). Sua fuga com o Tesseract provoca uma ramificação na linha do tempo, uma ofensa que o leva, primeiro, a ser preso pela TVA e, depois, a ser recrutado por um dos agentes do grupo, Mobius (Owen Wilson), para ajudar a capturar uma “variante” feminina do próprio Loki (Sophia Di Martino) que vem desrespeitando as regras de outras linhas do tempo. Numa reviravolta freudiana bastante inspirada, ainda que meio esquisita, os dois Lokis se apaixonam e se unem para destruir a TVA antes de voltarem a se estranhar.

Desde o início, Loki era uma adição excêntrica ao MCU porque, assim como o recente filme Viúva Negra, tentou dar retroativamente uma história de origem e crescimento para um personagem que já estava morto na linha do tempo central do MCU. Mais intrigante ainda, a série reposicionou um personagem que tinha sido um antagonista e um contraponto aos Vingadores como o irmão adotivo de Thor, o deus nórdico: agora ele seria o herói de sua própria história, a qual minava o que já tínhamos visto acontecer na franquia.

Ao fazer uma outra versão de Loki, agora como herói, a própria série está agindo feito uma variante. Em geral, a Marvel tem usado seus programas da Disney+ mais recentes para se desviar da linha do tempo muitas vezes cansativa e até opressiva que os filmes estabeleceram. Essas histórias secundárias abrem o mundo para narrativas mais sutis e interessantes: WandaVision e Falcão e o Soldado Invernal permitiram que seus heróis se desenvolvessem nas habilidades super-heroicas e também na profundidade emocional.

Mas, sejam quais forem suas divergências, essas histórias sempre acabam atreladas à narrativa principal do MCU, a inviolável linha do tempo da Marvel, o que muitas vezes produz um resultado estranho. WandaVision usou suas clássicas paródias de TV para explorar habilmente os contornos do luto e do escapismo emocional até que sua proximidade com Vingadores aparentemente exigiu o final explosivo obrigatório. Sam Wilson (Falcon) e Bucky Barnes (o Soldado Invernal) lutaram contra o trauma e suas consequências, mas, no final, o espectro do Capitão América e a possibilidade de Sam acabar ficando com o escudo dominaram a história.

Em Loki, o asgardiano descobre que tudo está predestinado, até mesmo sua identidade. Loki tem que ser vilão. E tem que perder. Não tem outro jeito. O que a série pergunta é: como um personagem cujo propósito é simplesmente acentuar, por meio de contraste, os pontos fortes e fracos dos outros conduz sua própria história?

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A Marvel corre o risco de se sabotar com Loki e com cada pedacinho de caos narrativo introduzido por suas séries mais recentes. Como alguma coisa pode ter algum risco emocional quando sempre existe uma brecha ou deus ex machina dobrando a esquina? (Na verdade, Loki se passa num loop fechado, que ao final da série foi reiniciado). E até que ponto a consistência narrativa não se desfaz e nos dá uma confusão indecifrável de eventos contraditórios?

A franquia quer se comprometer com um modo tradicional de contar histórias e com um pouco de caos narrativo na forma de viagens no tempo, múltiplos universos e mudanças não lineares no tempo e no espaço – tudo possibilitando desvios do enredo principal. Mas quanto mais histórias variantes obtemos, mais instável e complicada fica toda a estrutura.

Loki é um divertido toque de caos para os fãs de Loki – entre os quais me incluo – mas me faz pensar por quanto tempo mais a relativa ordem da cronologia central da franquia do MCU conseguirá sustentar os retrocessos e saltos e reversões, mesmo dentro de seus próprios vácuos de tempo. O vasto megaverso que é a Marvel já hospeda incontáveis personagens e histórias, mas ter um em que Loki ainda está vivo é infinitamente mais divertido.

Ainda assim, por mais encantador que Loki seja em termos conceituais, para mim parecia simplesmente um experimento engraçado e divertido. O que a Marvel fará com os resultados desse experimento é outra história. O final angustiante desta temporada significa que a medida completa do sucesso e do impacto da série ainda está por vir, seja na segunda temporada prometida no final ou no MCU mais amplo.

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Será que Loki é realmente uma variante dentro do MCU? Será que vai apresentar reverberações ao longo dos filmes e séries de TV daqui para frente? Ou será que vai ficar essencialmente isolado em sua própria bolha de pensamento lúdico? Se for a primeira opção, suspeito que a Marvel não será capaz de sustentar todo o peso da narrativa-mestre, com todas essas ramificações, para sempre – quer dizer, a menos que a Marvel abrace totalmente o caos e deixe o MCU se bifurcar em multiversos separados sem uma linha do tempo restritiva. Afinal, se o deus do engano nos ensinou alguma coisa, é que um pouco de caos pode ir muito longe.

*Este artigo foi originalmente publicado no The New York Times. / Tradução de Renato Prelorentzou.

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