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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|O preço da fé

Descobriu-se que, por trás da máscara, vivia um predador acusado de assediar e estuprar

Atualização:

O semiótico Umberto Eco era um dos acadêmicos mais celebrados, quando lançou um romance estilo Agatha Christie, O Nome da Rosa, em 1980. 

Descobriu-se que, por trás da máscara, vivia um predador acusado de assediar e estuprar Foto: Paris Filmes

Trama: crimes ocorrem num isolado mosteiro beneditino em 1327 no norte da Itália; o franciscano William de Baskerville é enviado para investigar o caso, seguido por outros franciscanos, representantes da Inquisição e da alta cúpula papal. Na adaptação cinematográfica de 1986, o frei foi vivido por Sean Connery, o eterno James Bond. Estudiosos da obra do filósofo professor da Universidade de Bolonha estranharam a frivolidade da narrativa policial, que virou best-seller. Porém, era nas entrelinhas do romance que Eco era Eco, intelectual de esquerda.  Numa torre do mosteiro, escondiam-se livros apócrifos que a Igreja proibia, como um suposto manuscrito do segundo volume de Poética de Aristóteles, dedicado à comédia. Morria envenenado quem o folheasse. A obra sobre o riso era escondida por guardiões da religião, cujo símbolo é a tragédia da crucificação e a dor.  Num outro debate, correntes da Igreja, franciscanos e beneditinos, questionam a riqueza perdulária da Igreja em contraste com a pobreza de Cristo, que vivia com uma única túnica, com representantes do papa, bispos e cardeais, que defendem que precisavam da riqueza para a evangelização, respeito e segurança. Se o próprio Cristo atacou os “vendilhões do templo”, comerciantes e agiotas que cercavam o Templo de Herodes, em Jerusalém, acusando-os de transformarem um local sagrado em covil de ladrões, sempre se questionou a ganância de religiões cristãs que compram emissoras de rádio, TV, produzem novelas, filmes, programas de TV, tudo em nome do Senhor.  Só a Igreja Universal tem 76 emissoras AM e FM, sem contar a Rede Record. Entidades religiosas devem fortunas à Receita Federal; um levantamento da Agência Pública, por meio da Lei de Acesso à Informação, revelou que, em 2019, 1.283 organizações religiosas deviam R$ 460 milhões ao governo; 23 igrejas possuíam dívidas de mais de R$ 1 milhão cada. A minha geração leu com espanto a apreensão nos EUA de 93 Rolls-Royces do líder espiritual indiano Bhagwan Rajneesh, conhecido como Osho. Tínhamos amigos seguidores, que vestiam adornos, colares, em tons laranja. Tinham até uma banda de rock. O documentário Wild Wild Country da Netflix, sobre a sede da seita no Oregon, foi dos mais vistos e trouxe para as novas gerações a história desse polêmico personagem, que seduziu milhares de seguidores em todo o mundo. Por que tantos Rolls-Royces, comprados com dinheiro de doações? Capricho tolo. Surpresa: ainda existem seguidores de Osho entre praticantes de massagem tântrica, os chamados tantrikas, que adotam codinomes como Gahan, Bahvti, Prem e Deva. Não devem assinar a Netflix. João de Deus é outro personagem controverso, agora em cana. O ex-garimpeiro e contrabandista foi considerado por décadas um curador. Sua fama atravessou fronteiras. Excursões de estrangeiros, alguns famosos, iam a Goiás para se consultar com o médium. Até o castelo de cristais ruir. Descobriu-se que por trás da máscara vivia um predador acusado de assediar e estuprar por décadas mais de 300 mulheres, inclusive a própria filha, que foi feita uma espécie de escrava sexual. Sua preferência? Jovens atordoadas por doenças ou acompanhando parentes terminais, levadas a uma salinha exclusiva. A série de quatro episódios João de Deus: Cura e Crime da Netflix revela seu método. No primeiro episódio, nos fazem acreditar que ele realizava, sim, milagres, com testemunhas fidedignas que se curaram. Depois, vemos como seu império foi construído. A forma de arrecadar doações era engenhosa. Tudo era muito precário e simples na “casa”, o templo em Abadiânia, cidade antes desconhecida. João Teixeira de Faria chegava com a roupa do corpo, despenteado, num carro velho. Atendia milhares de fiéis numa fila que não parava.  Aleatoriamente, fazia alguns milagres: levantava cadeirantes, extirpava câncer com métodos primitivos e escolhia suas presas. Ficamos sabendo que uma máquina de fazer dinheiro o rodeava.  As pousadas da região tinham que dar 10% para o líder espiritual. Nenhum ambulante se aproximava do templo. Tudo era vendido na sua lojinha, colares, fotos, lanches, água, livros escritos por ele, cristais, santos, até um medicamento, Passiflora, que servia para tudo e não passava de cápsulas de derivados do maracujá. Gringos eram convencidos a chamar mais gringos. Dólar e euro circulavam. Ele ganhava porcentagem dos táxis e ônibus que traziam fiéis. Operou impunemente durante décadas, cercado por informantes e um grupo de capangas armados. Quando preso, declarou à Polícia Civil ter várias fazendas, casas e carros. Em 2019, a Justiça bloqueou R$ 50 milhões em bens para ressarcir as vítimas.  A série traz depoimentos de seus assessores. Alguns percebiam que, durante a fila, João não tirava os olhos das garotas mais jovens e as levava. Cobravam uma explicação e eram ameaçados. Outros, mais fiéis, fingiam que não viam e diziam qual líder não tem vícios e defeitos, afinal, são humanos. “Fé cega, faca amolada”, diz a canção. É ESCRITOR E DRAMATURGO, AUTOR DE ‘FELIZ ANO VELHO’

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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