Não há defesa para o final do 'Drácula', da Netflix

Produção dos criadores de 'Sherlock' imaginaram um futuro injusto até mesmo para um vampiro

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Por Leandro Nunes
Atualização:

Nem sempre um clássico nasce por seguir as regras. Com um título mudado, junto com o nome das personagens, Nosferatu (1922) foi ameaçado pela justiça da época de ter suas cópias destruídas sob alegação de violação de direitos autorais. 

A história de um corretor de imóveis que vai até o castelo do rei dos vampiros, da obra de Bran Stoker, é a mesma trazida pela Netflix na série Drácula – pelo menos até o segundo e penúltimo episódio. Desde sua estreia na plataforma, há algumas semanas, as redes sociais se agitaram com os espectadores tentando entender “o que fizeram do final do Drácula da Netflix”. 

Claes Bang. Em três episódios, ator dinamarquês atravessa séculos em um futuro de tecnologia e aplicativos de encontros Foto: NETFLIX

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A produção é dos criadores de Sherlock (2010-2013), que consagraram a irreverência de Benedict Cumberbatch no papel do detetive de Londres. De posse dessa informação, já espere encontrar em Drácula um “easter egg” sobre Holmes – nos games e nas animações da Disney, easter eggs são aquele segredinhos escondidos pela história. 

Concebido como um terror pestilento, a obra de Stoker tem espaço e fôlego para ser narrada na hora e meia de cada episódio da série de Steven Moffat e Mark Gatiss. No livro, o ritmo das cartas trocadas por Jonathan Harker e sua namorada é o grande responsável por erguer o clima de terror bem à altura do castelo e de seu anfitrião. 

Enquanto conversa com uma freira – fique tranquilo, sem spoilers – o corretor interpretado pelo britânico John Heffernan revive os detalhes sobre os dias sombrios que experimentou durante a hospedagem junto ao vampirão das trevas. Desde a primeira cena, a série acerta nos diálogos e vai além das anedotas sobre sangue e vinho, humano e monstro. A ingenuidade do desavisado corretor não se desfaz, mas cresce com o espírito sedento de Drácula. 

Apesar de seu 1,94 m, o ator dinamarquês Claes Bang não é a única figura fascinante. Em um giro pelo castelo, surgem criaturas condenadas a um tipo de existência entre o mortal e o imortal. Dispositivos mecânicos que seriam capazes de levantar um Frankenstein sustentam esses mortos-vivos. 

A tecnologia do audiovisual faz muito bem para a série. Não se trata de uma história de efeitos retumbantes, mas do detalhe: na pele mutante e quase transparente de Harker, suas unhas enegrecidas que se desprendem dos dedos, das feridas abertas em sua cabeça, um corpo que agora é um lar de moscas, visto bem próximo da tela, impedido de encontrar-se com a morte.  Ao fim do primeiro episódio, com a duração de um longa-metragem, a produção sinaliza que deseja adentrar o livro com o rigor que uma grande narrativa merece. Não será bem assim.

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A série também consegue oferecer autonomia para personagens secundárias da trama, como o jovem marinheiro Sean, que no livro também registra seu pesadelo em cartas, e os demais tripulantes do navio. Nessa etapa, a narrativa se torna um jogo de presa e predador ao estilo Holmes. Mas a verdade por trás da origem dos viajantes e o motivo de estarem boiando juntos naquela embarcação-túmulo não encaminham o final que a série necessitava. E por aqui se encerram os elogios possíveis sobre Drácula. Mas sempre há chance de ser salvo desse barco furado. 

Não satisfeitos com o final da obra original, Moffat e Gatiss vão se aproveitar da imortalidade de Drácula para continuar uma narrativa que atravessa os tempos. Não é nada estranho levando em conta que a natureza do vampiro o fez testemunha e conhecedor das mudanças dos séculos e velho conhecido da maldade humana. 

No último episódio, as cartas dão espaço para a tecnologia. Sim, um mundo de celulares, internet e aplicativos de encontros amorosos conquistam o coração parado do monstro. Como se quisesse dar um fim a um folclore antigo, a série Drácula ignora o próprio empenho dedicado aos dois primeiros episódios para testar um jeito de dar descanso – moral e físico ao rei dos vampiros. 

O preço é alto. Até o final, a loucura criativa se espalha como uma peste. Drácula cai do posto de personagem trágica, para ocupar um lugar mais singelo e dramático (humano demais?). Para um vampiro que cruzou mares deitado em caixões com terra, fez tremer igrejas e tornou a vida de todos um inferno, ter que se alimentar da energia vital humana é um grande castigo.

Personagem se presta a inúmeras interpretações

Luiz Zanin Oricchio

As origens dos vampiros se perdem no tempo. Há quem diga que o personagem é inspirado no assassino de crianças Gilles de Rais, que acabou na fogueira. Mas quem estabeleceu a figura padrão foi Bram Stoker no romance gótico Drácula (1897). 

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Murnau o levou para a tela em Nosferatu (1922), obra-prima que expressa a angústia daquele tempo. Compõe um vampiro frágil, curvado, calvo, o exato contrário da imagem do conde em produções posteriores. Outra obra notável é Vampiro (1932), do dinamarquês Dreyer.Para firmar sua fidelidade ao original, Coppola chamou seu filme de Drácula de Bram Stoker (1992).

Mas o fez com liberdade narrativa. Deu-lhe tom romântico, com o pobre vampiro tendo de romper uma barreira de 400 anos para reencontrar a amada. 

O mito do vampiro caiu no gosto ocidental e gerou centenas de obras cinematográficas, em gêneros diversos quanto o terror, a comédia e a aventura. 

As características do vampiro se prestam a variadas interpretações. Como é imortal, mas depende do sangue alheio, já foi associado à nobreza parasitária. Ou ao capitalismo que suga a classe proletária. Foi imagem do homoerotismo e da sexualidade desenfreada.  Como vampiros têm sete vidas (ou mais) chegaram à saga Crepúsculo, seu mais recente avatar, para alegria do púbico teen. Haja mordida. 

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