Em ‘Master of None’, Naomi Ackie conta uma história ‘que nunca tinha visto’

A atriz britânica faz a maior parte do trabalho pesado de atuação na nova temporada da série da Netflix de Aziz Ansari, principalmente em um episódio delicado sobre problemas de fertilidade

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Por Salamishah Tillet
Atualização:

Criada por Aziz Ansari e Alan Yang, a série Master of None começou como uma comédia sobre as experimentações pessoais, atribulações de carreira e hábitos alimentares de Dev Shah de Ansari, um ator de 30 e poucos anos em Nova York.

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Naquela época, Dev buscava a sabedoria de um grupo de amigos nada comuns que incluía o extravagante e peculiar Arnold (Eric Wareheim), o charmoso e descontraído Brian (Kelvin Yu) e a sensata e elegante Denise (Lena Waithe).

Conforme a série avançava, Denise se tornou mais presente, principalmente no episódio Ação de Graças da segunda temporada. Inspirado na vida de Lena, o capítulo explora o passado de Denise e o apoio de Dev à amiga quando ela reconhece sua atração por mulheres e, finalmente, sai do armário para a mãe (Angela Bassett). Ansari e Lena ganharam um Emmy pelo roteiro desse episódio, o que fez de Lena a primeira mulher afro-americana a ganhar um prêmio nessa categoria.

A atriz Naomi Ackie, da série 'Master of None' Foto: Adama Jalloh/The New York Times

Dessa vez, Denise está no centro da história. A terceira temporada da série, que estreou na Netflix no mês passado e tem o subtítulo Momentos, gira em torno de Denise, agora uma escritora de sucesso, e seu casamento com uma aspirante a designer de interiores chamada Alicia, interpretada pela atriz britânica Naomi Ackie. Embora Ansari tenha dirigido todos os episódios e escrito a temporada com Lena, ele aparece apenas brevemente nesta temporada.

Conforme a série mudou seu ponto de vista, ela também mergulhou fundo em questões como abortos espontâneos e infertilidade, que as mulheres negras vivenciam de forma desproporcional. De acordo com um estudo publicado na revista científica The Lancet em abril, as taxas de aborto são 43% mais altas para mulheres negras do que para mulheres brancas. Um estudo anterior da Universidade de Michigan revelou que as mulheres negras têm quase duas vezes mais chances de sofrer de infertilidade do que as brancas e metade das chances de receber ajuda médica para essa questão.

“Eu não acho que tenhamos visto uma história de amor complexa como esta, entre duas mulheres negras durante um longo período de tempo”, disse Lena. “Tenho ouvido de tantos artistas negros que eles só querem ver [nas telas] negros que simplesmente existem [na vida real]. E o legal é que você consegue ver negros que por acaso são queer - e isso pode ser confuso e complicado.”

Mas, embora Denise sirva como ponto de partida para a história, é Naomi quem faz a maior parte do trabalho pesado de atuação. Enquanto Alicia se depara com desafios românticos e de fertilidade, por ser uma mulher negra queer, ela também enfrenta uma mistura de opressões, incluindo homofobia, racismo e sexismo. (Em determinado momento, seu médico diz a ela que não existe um seguro de saúde que atenda às necessidades de uma mulher que é "gay e deseja engravidar".)

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O capítulo mais introspectivo e poderoso da temporada é uma história autônoma, como Ação de Graças, em que Alicia, depois de sofrer um aborto devastador com Denise, decide se submeter a tratamentos de fertilização in vitro por conta própria. Embora Naomi reconheça que fazer este episódio, em particular, tenha sido física e emocionalmente desgastante, o esforço valeu a pena porque "Eu nunca vi duas mulheres negras queer ou a fertilização in vitro no centro da história", disse ela.

“Eu estava tipo, espera, há uma lacuna aqui em relação a quem essa história deveria pertencer, e se temos o poder de contar essa história com qualidade e com cuidado, então vamos fazer isso”, disse ela.

Naomi, que se tornou conhecida após sua participação na série britânica de humor ácido The End of the ____ing World,no filme Star Wars: Episódio IX ena série Small Axe de Steve McQueen, ainda é relativamente desconhecida nos Estados Unidos. Mas com sua performance em Master of None e um papel principal no próximo filme biográfico de Whitney Houston, I Wanna Dance With Somebody, parece provável que isso mude em breve.

Ela, que também é produtora executiva nesta temporada da série, falou comigo por vídeo, de sua casa em Londres, sobre como ela abordou uma personagem tão emocionalmente aberta, como ela percebe o foco da série nas mulheres negras e por que a história de amor de Denise e Alicia deve ser vista como um trabalho em andamento. Estes são trechos editados de nossa conversa.

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NYT: Você estava familiarizada com Master of None antes desta temporada?

NAOMI ACKIE: Assisti a primeira e a segunda temporada e fiquei realmente impressionada com o tom dela. Adoro como ela é engraçada, ao mesmo tempo em que não parece estar forçando uma comédia. Também parecia delicada, além disso, nunca tinha visto um homem asiático como um ator romântico e foi simplesmente revigorante. Então, sim, quando fui chamada para fazer o teste, pensei, “mas esses caras são engraçados”. Eu não sou uma atriz de comédia. Sou conhecida por minha cara de choro. Mas quando fiquei sabendo da direção diferente que eles estavam tomando nesta temporada, eu fiquei, tipo, “oh, meu Deus! Esta é minha área”.

NYT: Toda esta temporada foi inspirada pelo episódio Ação de Graças. Foi assim que Lena e Aziz apresentaram o enredo e a personagem Alicia para você?

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NA: Eu sabia que a história giraria em torno de Denise e sua esposa, e foi isso que me atraiu. Mas, inicialmente, não percebi que isso era um verdadeiro estudo do casamento, algo que nunca fiz antes. Até este ponto, eu interpretei personagens bastante fortes, como uma serial killer em The End of the ____ing World e Jannah em Star Wars”, que têm uma coisa decisiva em relação a elas. Então, essa foi a primeira vez que me senti meio despojada, em termos de performance.

NYT: O relacionamento entre Denise e Alicia é tão complicado - há o casamento delas, a separação e, então, a reconexão.

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NA: Eu me identifiquei com isso e com essas experiências pelas quais já passei na minha vida quando algum “ex” não permaneceu como “ex”. Só porque você não pode estar com alguém, não significa que você não queira estar com essa pessoa. O amor é complicado e confuso. Minha mãe sempre dizia: “Você pode acabar ou superar”. Portanto, para Alicia, existe esta sensação de: “Não consigo parar. Tenho que continuar tentando fazer o que quero, mesmo que tenha que largar algumas bagagens no caminho.” E então, para Denise, é uma história totalmente diferente.

Mais uma vez, parece tanto com a vida real, não é? Você esbarra em alguém e tem essa conexão incrível. Tenta construir uma vida e, então, percebe que vocês estão em dois pontos diferentes da vida e têm que negociar isso. Cada capítulo realmente parece um trecho e um olhar sobre a vida delas. O que Aziz, Lena, Alan e eu conversamos foi que este não é o fim para esses personagens. Esta é uma parte da história deles; apenas não estamos vendo o que acontece depois.

NYT: Apesar da discriminação que Alicia enfrenta como uma mulher negra queer, ela ainda decide passar por esse tratamento muito caro de fertilização in vitro por conta própria. Por que essa história foi importante para todos vocês?

NA: Eu ando pelo mundo como uma mulher negra, e as diferentes fontes de opressão têm um peso significativo, sobretudo se você é uma mulher negra queer. Se eu quisesse que as pessoas tirassem algo disso, é que essas fontes de opressão não passam despercebidas. A maneira como Aziz e Lena discutiram isso comigo foi: “Essa história nunca foi contada antes”. Eu acho muito legal que você possa ver duas mulheres negras de duas partes diferentes do mundo se unindo com muitas semelhanças, mas obviamente com histórias ligeiramente diferentes.

NYT: Mesmo estando sozinha em Nova York, Alicia tem dois belos relacionamentos: com a mãe em Londres e com a enfermeira da clínica de fertilidade. O que você espera que o público tire dessas interações e representatividades?

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NA: Uma das minhas cenas favoritas é a ligação da mãe de Alicia enquanto ela está aplicando a injeção, porque me lembra o que eu faria com minha mãe ou meu pai. Cordelia é o nome da enfermeira, mas também é o nome verdadeiro dela. Ela não é atriz. Quando essas cenas de fertilização in vitro estavam acontecendo, Cordelia entrou como [uma figurante]. Há uma das cenas em que ela está apenas confortando Alicia, e ela tinha uma energia tão maravilhosa! Aziz estava olhando e ficou tipo: “Essa mulher é tão tranquilizadora. Ela é incrível!" - e ela tem experiência em assistência médica. Então, ele acabou escrevendo novas cenas para Cordelia, e ela absolutamente arrasou.

A presença de mulheres negras nesta série é especialmente agradável e familiar, da mãe de Alicia a Cordelia e Denise. Eu me sinto em casa quando vejo a série. E é tão lindo ver mulheres negras representando esses diferentes arquétipos: uma esposa, uma mãe, uma profissional. Estou feliz que pudemos dar vida a essas histórias. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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