Vozes e orquestra se destacam em ‘Il Trovatore’

Cenários e falta de direção de atores comprometem montagem em cartaz no Municipal

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Ao preparar a montagem de Il Trovatore, de Verdi, que abriu no sábado a temporada lírica do Teatro Municipal, o diretor italiano Andre De Rosa explica que optou por manter sua encenação no tempo e espaço originais determinados pelo libreto: Biscaia e Aragão no século 15. Para ele, a modernidade, ou seja, a opção por retirar a ação de seu contexto original, por si só "não basta" – e não pode ser usada para encobrir a "falta de boas ideias".

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O modo como De Rosa e o cenógrafo Sergio Tramonti ocupam o espaço cênico, no entanto, parece sofrer de outro mal – o excesso. Há três ambientes cênicos distintos – um pequeno espaço, delimitado por arcos góticos; uma estrutura gradeada de aço, que se impõe sobre a cena; e uma floresta estilizada. Cada um segue uma estética diferente –, mas não há, entre elas, um diálogo harmonioso, o que retira da produção uma identidade visual própria, coerente, e também não é capaz de, em outra direção, sugerir camadas diferentes de leitura.

Além disso, a maneira como essas estruturas são posicionadas sobre o palco acaba por tirar o foco de um elemento importante tanto no contexto da trama como para o diretor, que a mantém a todo instante em cena: a fogueira. E talvez seja o reduzido espaço o responsável pela movimentação cênica pouco inventiva e, às vezes, inexistente, que torna inexpressiva a movimentação do Coral Lírico Municipal, afasta os amantes no momento em que celebram seu amor ou retira toda a intensidade e ritmo sugeridos pela música em passagens como a revelação do triângulo amoroso no trio que encerra a primeira parte da ópera. Com raríssimas exceções, aliás, o modo como se comportam os atores em cena vai na direção oposta da busca assumida pelo diretor de repensar o papel de cada personagem, investigando suas motivações mais profundas e humanas e recusando o esquema redutor que os separa entre vilões e mocinhos.

Em Verdi, no entanto, é preciso ter sempre em mente que a expressividade passa necessariamente pela voz, pelo canto. Próximo do passado bel cantista (em que a voz era começo, meio e fim) ou já na direção de um novo drama (em que o teatro se impõe perante a música e o texto, estabelecendo entre eles uma nova ligação), a revolução verdiana terá como eixo sempre a voz e as suas possibilidades expressivas. Isso é verdade no Trovatore e, em especial na montagem do Teatro Municipal, na qual são as vozes e a realização musical os melhores elementos.

Mesmo em um reparto homogêneo como o montado pelo maestro John Neschling, é possível fazer algumas distinções. O Manrico do tenor norte-americano Stuart Neill é marcado não apenas por grande sensibilidade como se revela seguro em todas as regiões, dos graves aos agudos, criando momentos de contraste cênico inspirados, como a ária "Ah Si Ben Mio" e a cabaletta que a ela se segue, "Di Quella Pira". Já a Leonora da soprano italiana Susana Branchini, segura e atenta às possibilidades expressivas da escrita verdiana no início da ópera, sofreu com certa insegurança nos saltos de tessitura que, na parte final, são fundamentais para revelar o amadurecimento de uma personagem que se percebe não mais como uma jovem inocente, mas, sim, como uma mulher presa entre as convenções sociais de sua época e a crença inabalável num amor que, ela agora sabe, pode levá-la à destruição.

Como o Conde de Luna, o barítono italiano Alberto Gazale criou uma interpretação idiomática e matizada – e, no papel de Ferrando, o baixo Enrico Giuseppe Iori fez dos graves fartos o ponto alto de sua caracterização.

O grande destaque vocal, no entanto, foi a meio-soprano norte-americana Marianne Cornetti. A cigana Azucena é um personagem emblemático de Verdi, em um momento no qual ele não apenas resolve levar ao palco figuras marginalizadas como se distancia da temática política e nacionalista do início da carreira em direção a óperas que lhe permitam investigar características profundas do ser humano. E a interpretação de Cornetti dá a exata medida da revolução proposta pelo compositor. Não se trata só do volume da voz – e do controle que ela mantém sobre ele. Mas sim da sua capacidade, na segunda parte da ópera, de fazer de Azucena uma figura em transe, obcecada pelo fogo e seu simbolismo; uma mulher atormentada, incapaz de se desligar de um passado traumático; e uma mãe carinhosa e feroz, que ao mesmo tempo em que se sente compelida a proteger Manrico, não hesita em envolvê-lo em sua trama de assassinato.

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Resta, nesse contexto, chamar atenção para a regência de John Neschling. Em que pesem dois pequenos desencontros entre orquestra e palco, nas duas primeiras partes da ópera, seu trabalho é marcado pela capacidade de dar fluência à narrativa e, sem perder o controle do discurso dramático, comentá-lo por meio da busca por elementos nada óbvios dentro da partitura. Mais do que isso, o que se revelou na récita de sábado de Il Trovatore foi uma nova Sinfônica Municipal, mais segura e com personalidade, feito notável em menos de um ano de processo de renovação.

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