'Viver é Melhor que Sonhar' revela um Belchior ainda mais desafiador

Ao seguir os últimos anos do cantor, ótimo livro de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti não tem o tom das certezas definitivas das biografias, mas traz novas perguntas e reflexões sobre as contradições do homem que desapareceu para voltar imortal

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Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Um road book seguindo os passos dos conflitos e das contradições vividos por um dos personagens que se tornam cada vez mais intrigantes pelo desafio que fazem aos entendimentos cartesianos e pela distância que guarda de todas as lógicas. Para lidar com a complexidade da saída de cena artística do cantor e compositor cearense Belchior, morto em 2017, este foi o formato que os jornalistas e biógrafos Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti desenvolveram para se aproximar do estilo dos desapegos de Belchior e da mulher que estava com ele o tempo todo, a produtora e artista plástica Edna Prometheu. O livro, Viver é Melhor que Sonhar: Os Últimos Caminhos de Belchior, sai agora, na semana em que se completam quatro anos da morte do cantor (mais precisamente sexta, 30 de abril, quando Belki, como assinava às vezes, se deitou no sofá da última hospedagem que lhe deu abrigo para não acordar mais) e com a notícia de que a história será convertida em documentário pela Urca Filmes, com coprodução do Canal Brasil.

Belchior: fugiu e preservou o passado ao mesmo tempo Foto: Estadão

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O trabalho de Chris e Bortoloti não tem o distanciamento narrativo das biografias convencionais, que se faz pela "boca" do próprio livro. Os dois assumem um texto em primeira pessoa sem especificarem obrigatoriamente o que cada um fez nem como se dividiram durante a jornada. Em algum grau, conseguem colocar o leitor a seus lados criando, com um texto objetivo que não manipula emoções, expectativa, cumplicidade, tensão, torcida, raiva, questionamentos e tristeza. Uma profunda tristeza, o que para muitos pode ser alívio e para outros justiçamento ao sabermos que o artista morre depois de viver seu tempo de evocar o Belchior do imaginário coletivo apenas para usá-lo como sua última moeda. Sem dinheiro no bolso nem contato com amigos importantes, só tem a oferecer em troca de furtivas moradias e providenciais pratos de comida o mesmo passado do qual parece querer se distanciar o tempo todo.

  Chris e Bortoloti, conforme escrevem no epílogo, percorreram mais de 10 mil quilômetros, visitando doze cidades pelo sul do País e Uruguai e entrevistando mais de 150 pessoas que conviveram com o casal. Hotéis com contas deixadas em aberto, quartos de pousadas com pertences largados para trás, casas de amigos e desconhecidos, mosteiros e até o relento de um baixo de ponte vão sendo revisitados, adentrados e fotografados. As histórias contadas não chegam de forma policialesca, um sabor que certamente os tentou diante de tantos elementos fantásticos que poderiam ganhar outro teor em mãos erradas, mas sempre com uma abertura para reflexões e uma boa vontade para o entendimento. Afinal, o que levava Belchior e Edna não só a quererem deixar a vida que tinham como se apegarem a um estilo de vida incansavelmente delituoso? Houve contravenções pelo caminho, como o pagamento de contas com cheques sem fundo e o não acerto de uma pensão alimentícia por parte do cantor. A ex-mulher e os filhos ficaram sem notícias e o nível de calotes e de aproveitamentos da boa vontade dos fãs se dá em um grau que cutuca a indignação.

  “Eu confirmei a desconfiança de que Belchior não era aquele criminoso retratado pela mídia”, diz Chris Fuscaldo, abrindo outra discussão que o livro traz: a forma como os jornais e as revistas trataram do desaparecimento do cantor. “Ele era um ser humano e, como todos, tem suas adversidades e suas complexidades que o levaram a tomar atitudes não exatamente planejadas.” Chris teve surpresa ao saber que, em nenhum momento do caminho, Belchior abriu seu coração. Ele jamais disse o que o levou à vida de cigano sem fim assim como jamais voltou a sonhar um sonho terreno. Até falava em fazer uma volta triunfal, com um grande show, mas nunca pareceu ter alguma convicção de fato neste projeto. Usou-o, sim, em muitos momentos para ganhar tempo com anfitriões que lhe davam guarida. Seu perfil de homem que mantém o mesmo rosto (o bigode segue suntuoso, com os fios brancos sendo meticulosamente tingidos de preto) e de bons causos (ele adorava lembrar de seu encontro com Elis Regina) não é de alguém que rompe com o passado. Assim como seu exílio na estrada, e não um isolamento de moradia fixa (aquele ao qual prefere Geraldo Vandré), não configura rancores da mídia, por exemplo. Mas, se ele fugia, de que fugia? E se buscava algo, o que era, onde era? “As respostas sempre vão ser projeções, explicações mais referentes a quem explica do que ao próprio Belchior”, diz Bortoloti. Se estava em seus planos matar o artista dos anos ruins para preservar apenas o “bom Belchior”, ele conseguiu, diz o coautor. Ao morrer, e mesmo durante seu exílio, as velhas gerações prescreveram seus delitos e as novas passaram a conhecer apenas o que Belchior fez de melhor, aquele que poderia estar vivo ou morto, só ou acompanhado, no Ceará ou em Bangladesh. Aquele que não precisava mais estar presente para ser Belchior.

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